O atributo mais evidente da escrita é, desde logo, “ficar escrito”. O que se escreve, mesmo que não seja na pedra, pode nem ser lido ou ser apagado, mas tem sempre mais valor do que aquilo que apenas é dito e falado. Independentemente da interpretação ou credibilidade que alguém lhe der, “ficar escrito” é, por si só, revelador da vontade, do pensamento e dos valores de alguém. Seja um tratado, uma lei, um panfleto ou uma outra coisa qualquer, no mínimo, um texto traduz sempre uma reflexão, imediata ou adiada, sobre o seu conteúdo. Do valor do aí refletido encargar-se-á a História. Obviamente, determinando a necessidade e a urgência de tudo se aperfeiçoar, porque a realidade não é estática e obriga a novas reflexões e textos. Isto, sucedendo com tudo, não podia deixar de ter sucedido com os tratados de Roma, do Luxemburgo, de Maastricht, de Amesterdão, de Nice e de Lisboa. Este último marcado pelo celebrizado “porreiro pá” que não é mais, nem menos, do que esta nossa maneira de encarar os sucessos, sejam eles comezinhos ou estruturais, e nos dificulta a distinção entre uns e os outros. Passada quase década e meia, ditaram os deuses e as circunstâncias que, como a querer emancipar-se de atavismos maneiristas, Portugal se constitua, de novo, como referência no friso da história europeia, através da Cimeira Social do Porto. “Só intenções”, clamam de um canto, “tudo conversa”, ecoa doutro. À partida, este reduzir a zero o valor das intenções faz logo supor que, por ventura, trará mais água no bico do que uma vontade mínima de contribuir para a melhoria desta Europa que se quer cada vez mais coesa e solidária. No entanto, o simples exercício de dissecar tais clamores, implicaria a sua validação o que não interessa para nada e, por isso, melhor será não o fazer.
Lembremos antes a utilidade de se ter uma intenção e, já que dela dependerá o nosso quotidiano, boa, de preferência. Num tempo em que a moda retórica dita que as palavras “estratégia”, “estrategicamente” e outros estratagemas que tais insuflem discursos e narrativas, nem será muito descabido lembrar também da conveniência de se apurar primeiro o “com que intenção”, antes de se adotar uma. Ou, pelo menos, de a descrever, porque, às vezes, isso até é o bastante para se perceber ao que o estratega vem. Ter uma intenção é bom, se, como é o caso da Cimeira do Porto, for a de construir uma sociedade mais inclusiva, justa e livre, melhor ainda. Pensar, agora, na estratégia para a concretizar passará por pensar nas leis, que a respaldarão. Sem esquecer que embora, metaforicamente, o disposto por lei se possa assemelhar a um Bugatti Veyron (o que não é invulgar), de nada servirá se aos pilotos lhes der para conduzir sobre arroios, claro. Mas, construir essa estratégia passará, igualmente, pelas nossas escolhas individuais e pelo juízo com que as fizermos. De que vale a intenção de promover políticas que privilegiem uma economia ao serviço do bem comum se, a seguir, recorremos a empresas assentes em trabalho escravo para suprir as nossas necessidades? À primeira, podemos responder que de nada, à segunda, obrigar-nos-á a refletir sobre o assunto. E esta reflexão será já meio caminho andado para uma sociedade mais justa, inclusiva e, acima de tudo, livre. Foi assim que, mais ou menos, ficou escrito…
O valor das intenções
«Lembremos antes a utilidade de se ter uma intenção e, já que dela dependerá o nosso quotidiano, boa, de preferência»