Uma das profecias dos tempos modernos afirma que, um dia, as máquinas e os computadores substituirão os homens na maioria das profissões. Ancorado ao presságio vem quase sempre uma espécie de atenuante: serão sempre necessárias pessoas para criar e proceder à manutenção da maquinaria e dos programas informáticos. Contudo, os avanços extraordinários registados pela inteligência artificial e pela robótica nos últimos anos indicam que até nestas tarefas a necessidade de trabalhadores humanos será cada vez menor.
As sociedades humanas estão, assim, numa encruzilhada. Por um lado, vislumbramos a possibilidade de uma vida melhor, com menos obrigações e mais tempo para o lazer. Por outro, paira sobre nós a necessidade de encontrar fontes de rendimento sustentáveis e socialmente justas para todos aqueles que venham a ser total ou parcialmente excluídos do novo mundo laboral.
Os governos dos países industrializados deveriam estar conscientes da dimensão deste desafio, mas o certo é que pouco ou nada tem sido feito. A diminuição das horas de trabalho semanal, o aumento dos dias de férias e a redução da semana de trabalho podem enquadrar-se na tentativa de resolução. Seja como for, estas medidas continuam a ser pensadas segundo uma lógica de resposta a reivindicações dos trabalhadores e não como partes integrantes de uma solução compreensiva para a realidade laboral emergente.
Há propostas mais ousadas, como, por exemplo, o Rendimento Básico Incondicional (RBI). O RBI consiste na atribuição mensal ou semanal de uma quantia monetária fixa a todos os cidadãos, independentemente de terem ou não emprego e independentemente da sua condição socioeconómica. A quantia é calculada de modo a garantir uma vida digna a quem o recebe. Neste cenário, já não é necessário trabalhar para levar uma vida com dignidade. Trabalhar passa a ser uma opção para os cidadãos que querem auferir um valor acima do que lhe é atribuído pelo RBI.
A implementação universal do RBI levanta sérias dúvidas, sobretudo no que respeita à sua sustentabilidade financeira. Seja como for, em breve ouviremos falar de outras propostas semelhantes, todas elas desafiando um dos pilares da organização socioeconómica do mundo contemporâneo: a dependência do trabalho para garantir o sustento e para definir o estatuto social.
Não é difícil concordar com todos aqueles que afirmam que só somos verdadeiramente livres quando não temos responsabilidades e obrigações (onde o trabalho, obviamente, se inclui). Mas esta afirmação não nos deve levar a desvalorizar o papel central que o trabalho tem na vida de tantas pessoas. Há pessoas que gostam de trabalhar. Há pessoas que exprimem a sua criatividade através do trabalho. Há pessoas que valorizam o princípio do desenvolvimento individual através do trabalho.
Se o período da história que se aproxima for mesmo o Triunfo das Cigarras, momento em que o trabalho deixa de ser o epicentro das nossas vidas, então é possível antecipar uma mudança estrutural de grande alcance. Durante milénios, trabalhar foi visto como algo vil, que só os grupos não privilegiados e os membros desafortunados da sociedade tinham de fazer para conseguirem sobreviver. Talvez o impacto seja de tal magnitude que a situação até se inverta por completo e trabalhar passe a ser visto como um privilégio de poucos.
* Antigo presidente da Federação do PS da Guarda e ex-vereador da Câmara da Guarda