Na eminência do novo confinamento geral, uma das primeiras certezas que veio a público foi, outra vez, o encerramento de todos os recintos culturais. Não existiam relatos de quaisquer focos pandémicos durante eventos culturais recentes, dotados que eram de espartanas regras de segurança sanitária. Porém, pelo sim, pelo não, numa sanha moralizadora perante qualquer conforto psicológico – à exceção, claro, de um Natal demagógico e, afinal, vingativo – decidiu cancelar-se qualquer cultura que não passe pelo isolamento do “streaming” ou a solidão estoica do tablet. Como no passeio higiénico, cultura só sem companhia.
O sector cultural é sempre um alvo fácil: a cultura não suscita excessiva simpatia das massas de eleitores; a cultura é (supostamente) só para o benefício de alguns; a cultura não é (supostamente) essencial. Se falta o dinheiro – e neste país falta sempre – corta-se na cultura. Qualquer que seja a cor do governo, em Portugal a cultura fica sempre aquém do famoso 1% do Orçamento de Estado. E é também por isto que, em cultura, além das vicissitudes pandémicas do momento, temos que pensar mais longe do que os próximos meses.
Daqui a uns anos, a Covid-19 estará (supostamente) a caminho do esquecimento a que foi votada a gripe espanhola e tudo voltará ao “normal”. Mas será mesmo assim? Para quem vê nesta pandemia um ensaio geral para a emergência ambiental, este é apenas um momento de tomada de consciência.
Com este novo vírus, percebemos que o avanço humano para as poucas áreas selvagens que restam pode trazer dissabores súbitos e inesperados. Mas começámos também a perceber que, à medida que destruímos o ecossistema planetário, pandemias como a Covid-19 podem repetir-se a um ritmo insuportável. Agora, foram os morcegos ou os pangolins a dar-nos uma infeção de última geração. A seguir, temem alguns cientistas, será o derretimento do permafrost do Ártico a libertar um qualquer vírus paleolítico.
Para referir apenas o que a região já percebe, nas próximas décadas essas potenciais pandemias vão somar-se aos incêndios incontroláveis, aos fenómenos climatéricos extremos, às secas e à desertificação – sendo uma das vantagens do “interior” o não ter que lidar com a subida do nível dos mares, a não ser acolhendo os compatriotas refugiados.
Este cenário desagradável é o que alguns chamam a era dos terramotos: uma sucessão imparável de crises e desastres que, ao que parece, não estamos muito interessados em evitar. Se a cultura é a primeira a “morrer” num estado de exceção ou de pobreza endémica, imagine-se como sobreviverá a um estado de emergência permanente. Certamente terá que se reinventar por completo.
Tardando a mitigação das origens das alterações climáticas, no futuro a cultura terá que alinhar, como tudo o resto, pela lógica da adaptação. Porém, mais que digitalizar-se ou converter-se à linguagem da televisão, das televendas e do teletrabalho, a cultura terá que fazer parte das artes de sobrevivência do nosso quotidiano – como, aliás, aponta o tema certeiro da Capital Europeia da Cultura de 2024, na pequena cidade estónia de Kaunas.
Quando em janeiro do ano passado me juntei à candidatura da Beira Interior a Capital Europeia da Cultura de 2027, propus que os impactos da emergência ecológica nas nossas práticas culturais coletivas fossem um tema central da Guarda 2027. Às questões já identificadas como relevantes para a região – o património natural e cultural endógeno, as migrações, as diásporas e as relações transfronteiriças – juntava-se, assim, a reinvenção do “fazer cultura” como fator de resiliência das comunidades locais.
Estava longe de imaginar que, dois meses depois, e outra vez um ano depois, uma pandemia viria confirmar a urgência e a pertinência desta orientação.
Pedro Gadanho
Diretor-executivo da candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura em 2027
N.R.: Pedro Gadanho é o quarto convidado de O INTERIOR a partilhar a sua opinião sobre o novo ano, bem como as suas preocupações, aspirações e anseios.