Antigamente, quando se injuriava alguém podia contar-se com um desafio para um duelo. Na escola da minha infância e juventude esperava-se lá fora pelo ofensor e resolvia-se o assunto a murro. Com a civilização é outra coisa, vai-se para tribunal.
Os duelos foram criminalizados e as ofensas corporais em resposta a injúrias ou difamações, mesmo que estas sejam consideradas para efeito de medida da pena, são criminalmente tratadas. Não vale a pena por isso ir às fuças ao Ventura ou desafiá-lo para um duelo. Quanto aos tribunais, já lá vão os tempos em que as ofensas à honra eram sistematicamente punidas, fosse qual fosse o caso. No país das excelências e dos doutores e engenheiros podia sentar-se o cu no mocho por se dizer que alguém tinha “mau carácter” ou que se tinha dúvidas sobre a sua honestidade.
Nos Estados Unidos dos tempos da luta pelos direitos civis, os estados do Sul, onde vigorava ainda a segregação, serviam-se dos tribunais para silenciar a opinião pública e a liberdade de imprensa. Sob a ameaça de processos de milhões, os jornais preferiam calar-se. Sabia-se, já então, a força que tem uma opinião pública informada e ativa e o peso que pode ter a informação livremente transmitida sobre o resultado de uma eleição.
Essa estratégia de intimidação, executada por quem hoje estaria na extrema-direita, vingou durante alguns anos, até que um processo contra o “New York Times”, em que o jornal foi condenado (New York Times v. Sullivan, de 1964) por uma notícia sobre um incidente em Montgomery, Alabama, precisamente sobre a luta pelos direitos civis dos negros, fez a sua marcha até ao Supremo Tribunal dos EUA. Aí o jornal foi absolvido com o argumento de que a liberdade de expressão era um direito fundamental e que, para haver abuso punível dessa liberdade de expressão, seria preciso demonstrar-se a malícia do abusador.
Essa decisão não faz jurisprudência na Europa, mas os mesmos princípios estão por detrás da prática constante e inalterada desde há muito do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A liberdade de expressão é essencial à nossa vida em sociedade e é mais importante do que o direito à honra. A crítica pode ser agressiva e muitas vezes injusta, mas não se pode condenar ninguém ao silêncio. Há punição dos abusos, claro, mas a regra geral é clara: a liberdade de expressão e opinião são sagradas.
O problema dos nossos dias é que a extrema-direita virou a seu favor esta liberdade e consegue desvirtuá-la impunemente. As notícias falsas com que injuriam os opositores políticos são liberdade de expressão, não existe a cave do restaurante em Washington em que os democratas beberiam sangue de crianças em rituais satânicos e não há qualquer prova de que isso acontecesse, mas não faz mal, é liberdade de expressão, os turcos trabalham tanto ou mais do que os portugueses mas podem insultar-se à vontade como preguiçosos. A extrema-direita reclama hoje o direito de dizer tudo o que quer sob a capa desse direito e tem como único limite a sua consciência – coisa que no caso do Ventura, por exemplo, vale o seu peso em banha da cobra.
A coisa pode piorar. A inteligência artificial está a desenvolver-se a uma velocidade que ninguém previa há apenas dois anos. Hoje é possível pedir ao Chat GPT que invente uma história falsa, mas credível, sobre alguém e essa história, se for divulgada anonimamente nas redes sociais, vai enganar milhões e influenciar escolhas eleitorais. Já foi feito, certo, mas os meios agora disponíveis são muito mais sofisticados.
A solução não pode estar em proibir, em criar o crime de delito de opinião, em regressar a 1964 ou na criação de um sistema de censura prévia. Há demónios que devem continuar enterrados, mas alguma coisa tem de ser feita ou qualquer dia todos vão usar os mesmos truque.s e não saberemos mais em
quem ou em quê acreditar
O direito a mentir e insultar
“O problema dos nossos dias é que a extrema-direita virou a seu favor esta liberdade e consegue desvirtuá-la impunemente.”