Aproxima-se mais uma ida às urnas. Os cidadãos estão convocados para mais um número desta nossa democracia representativa. Não faltam trapezistas, contorcionistas e muitas outras especialidades da política, mas quem predomina são mesmo os ilusionistas. Para cada cena dos problemas de cada concelho há artistas capazes de números hilariantes e de tirar do sério o mais otimista dos eleitores. Recordo aqui um texto do sociólogo Maurício Tragtenberg intitulado “O voto e as ilusões democráticas”, publicado na prestigiada “Folha de S. Paulo”, a 14 de novembro de 1982. Para Tragtenberg, «O voto universal é a aparência do governo popular. Os eleitos acabam por emancipar-se da dependência do povo, e a política torna-se ciência oculta que a população não entende». É, na opinião de Tragtenberg, um «governo por procuração», entendendo-se aqui por governo todo e qualquer poder saído de uma farsa eleitoral. «Ele é governado por representantes vinculados ao poder económico dominante na sociedade, às “máquinas burocráticas” dos partidos políticos», acrescenta Tragtenberg.
Vem isto a propósito da mais que anunciada abertura de um hospital privado na Guarda, seja ele uma residência sénior com valências médicas ou uma unidade hospitalar com residência sénior. Cai por terra o argumento de que é apenas uma «promessa eleitoral». Para o provar aí está, em cena patética e grotesca, a assinatura em plena área vazia, descampada e com ruínas de um antigo matadouro como pano de fundo, do acordo entre o grupo financeiro Medcapital, o grupo “Terra Quente” e a Câmara da Guarda, para a construção de uma unidade hospitalar que possibilitará, segundo os promotores, cirurgia de ambulatório, num centro de meios complementares de diagnóstico realizando cerca de 80% a 90% dos exames que atualmente estão a ser realizados fora da Guarda. A MedCapital, parceiro do investimento, diz que um dos objetivos desta unidade privada é estabelecer parcerias com o hospital público da cidade no sentido de resolver problemas como a falta de médicos e a redução do tempo de espera para cirurgias. Aqui chegado, lembro que a criação dos postos de trabalho anunciada vai fazer-se com a transferência de muitos profissionais do atual hospital público para o anunciado hospital privado. Os exames de ambulatório que se propõem realizar e a falta de médicos, enfermeiros e outro pessoal no hospital público deve-se à inércia, inépcia e incompetência quer do poder central, quer das sucessivas administrações que foram passando pela ULS. Vir-se hoje derramar lágrimas de crocodilo com o anúncio público deste acordo é hipocrisia pura.
O exemplo recente do número de vagas atribuídas ao hospital da Guarda, o incumprimento das promessas feitas para a reconstrução dos pavilhões, a falta de condições de acessibilidade aos utentes, a falta continuada de certos equipamentos, o esgotamento de médicos, enfermeiros e restante pessoal, a falha numa programação atempada e assertiva de trabalho de ambulatório e de diagnóstico, o depauperado apoio domiciliário a quem dele mais precisa, o fim das perseguições a médicos, a utilização do diálogo para a busca de soluções, seriam algumas das medidas a ter em conta. Nada fazendo, quer os partidos do arco do poder – PSD, CDS e PS, quer os poderes locais, desde Câmara e Assembleia Municipal, e os próprios deputados eleitos na Assembleia da República, abrem o flanco para a iniciativa privada que tudo tem a lucrar com o negócio da saúde. Lembro o caso recente dos acordos rasgados pelos hospitais privados com a ADSE que obrigam os utentes desse subsistema de saúde a pagar na íntegra todos os serviços. Tudo concertado com a ausência de investimento no sector público e a consequente falência dos serviços para que o privado avance, com segurança, nas várias negociatas.
Voltando à análise de Tragtenberg, saliento «A ilusão eleitoral em pensar que, depositando ritualmente um voto numa urna, o povo detém algum poder de decisão quando o candidato é escolhido via “compra da legenda” em dinheiro». O voto transforma-se na cenoura para burro. A ilusão eleitoral leva o povo à inércia, ao adormecimento, esperando que alguém lute por ele. No fundo, é uma escola de conformismo social, onde se confunde a mobilização popular real partindo dos próprios interessados em defenderem suas reivindicações, com a arregimentação do povo em comício onde alguém indicado fala por ele.
Triste e pobre democracia representativa em que – por simples «procuração» – alguém ousa falar em nome e no interesse de milhões. Falsidade maior não existe. Sejam sinceros, transparentes, e pelo menos não nos façam de parvos. Será pedir muito depois de todo o mal que nos têm feito?
O circo, a pantomina, os bombos e a ilusão
Para cada cena dos problemas de cada concelho há artistas capazes de números hilariantes e de tirar do sério o mais otimista dos eleitores