Um dos temas que perpassa todos os policiais de origem americana é a honestidade e perseverança do polícia herói. Politicamente isento, religiosamente neutro e de inteligência superlativa, nunca falha na missão de repor a justiça nas situações socialmente mais disruptivas. Por oposição, nas obras dedicadas ao tema, o polícia europeu surge com as certezas de um bronco e as fragilidades de uma criança na fé de que todos os santinhos estão do lado dele. E, se não fosse o cérebro de um Poirot, de uma miss Marple ou de um Sherlock, por aqui, não se passava da ineficiência judicial. Na tarefa de manter a coerência narrativa, ou cénica se preferirem, será o desempenho dos atores a adaptar-se ao público. O que nos leva à conclusão de que, a existir tal necessidade, são públicos diferentes: o americano mais dado ao individualismo e o europeu ao colaboracionismo. O polícia americano aniquila todos os criminosos sozinho, mas o polícia europeu não alcança nada sem terceira mãozinha. Mas, para este texto, isso não interessa. A questão aqui é: por que razão, a par da coca-cola, das pizzas e dos hambúrgueres (de que os americanos até já parecem ser os pais), importamos com tanto entusiasmo esta representação literária e cinéfila e recusamos importar caraterísticas subjacentes a este tipo de narrativas? Se calhar, somos seletivos nas importações. Ou então, à semelhança dos fenómenos da pizza e dos hambúrgueres, até nos dá algum jeito atribuir as despesas da paternidade do racismo aos do lado de lá do Atlântico dizendo que isso, do racismo, é coisa de americanos. Declarando solenemente que “Os americanos são racistas, mas nós não. Aqui é diferente, nunca houve racismo como na América”, apesar de bastar o “como” para assumirmos que há, prosseguimos em negação adicionando-lhe o bonzinho, tolerante, quase que uma manifestação de afeto pelas pessoas de outras origens e nacionalidades.
Por isso, irromper em contestações disruptivas contra o racismo, na América é compreensível e legítimo, por cá não. Uma camada de pessoas não consegue referir-se ao nosso primeiro-ministro sem pronunciar “preto” ou “monhé”, mas não somos racistas. Brasileiros e africanos, a menos que sejam políticos, ricos ou, de preferência, os dois em simultâneo, vêm-se da cor da abelha para alugar casa, mas não somos racistas. Bem, às vezes somos, mas nunca mais do que os outros e muito menos com a mesma perversidade. Prendemos mais africanos que europeus, mas não os matamos por dá lá aquela palha. Insultamo-los pela sua origem e ascendência, mas nunca por os considerarmos intelectual e socialmente inferiores. Porque nós não somos racistas, a prová-lo, além de tudo o resto, está esta nossa preponderância para o voluntariado em países africanos esteticamente descrito nas imagens que captamos com um pretinho sujo, esfomeado e desvalido ao colo que a nossa consciência, não racista, em jeito de memória propagandística, há de disseminar pelos murais de curta duração em todas as redes sociais. Ao fim e ao cabo, lembrando o que diz Goffman, a bem da coerência narrativa é apenas o que se espera de cada um de nós.