Cartas ao Marquês (I)

Escrito por João Mendes Rosa

Caro Sebastião José: Peço-te desde já que me dispenses de um tratamento mais protocolar – afinal escrevo-te do teu Palácio, neste sábado de nevoenta sonolência matinal, numa das tuas salas preferidas, bordejada de requintada azulejaria barroca, disfrutando do vislumbre panorâmico e inspirador que a tua Capela das Mercês proporciona, primorosamente desenhada pelo imenso Carlos Mardel, maçon como tu – e um dos magistrais obreiros da reconstrução da cidade fundada por Ulisses. Olhando para o interior do templo, reaprecio os detalhes dos estuques assinados pelo italiano Giovanni Grossi em diálogo com as cores rutilantes das soberbas telas de André Gonçalves; – começo por te dizer que, se a nossa relação recua a tempos já remotos, ela foi na verdade iniciada da pior maneira. E a culpa nem foi bem nossa. Foi, “quod absurdum”, do Camilo! Sim, esse: “picado de génio de bexigas” – o Camilo Castelo Branco! Sabes? Não sei que caprichos do acaso me impeliu para a leitura do “Perfil do Marquês” aí por volta dos quinze anos. E tal facto determinou que tivesse por ti a desafeição que desconcertações como a que se vai ler, articuladas no proémio inclemente à obra citada, inculcam num rapazote a entrar numa adolescência não era totalmente arredia – pobre de mim! – de aspirações intelectivas: «O meu ódio, grande, entranhado e único da minha vida, ao marquês de Pombal…» Urdida tão magistralmente a trama da desafeição como só Camilo sabia, vibrou com irreprimível fulgor no meu permeável aparelho auditivo, impregnadamente camiliano já que, por esse tempo, autores como Eça me estavam vedados por imperativos ditos salvíficos, resguardando as minhas certezas fideístas do fogo eterno, da perdição da alma e do senhorio da Trindade santíssima. Mas não foi só isso: sempre me horrorizou a chacina dos Távoras, pavor agravado pelas célebres litogravuras coevas que intensificavam o drama das torturas e coerções. Custa-me perdoar-te o cárcere da Marquesa de Alorna em Chelas, que impiedosamente mantiveste, mesmo sabendo que ela que lia, como tu, Rousseau, Voltaire, Montesquieu e Bayle – e sabias tão bem quanto ela o quão estávamos precisados de enciclopedistas lusos. Ela, a divina Leonor, que traduziu Horácio, como sabes, cujo busto, caro Sebastião José, encomendaste a Machado de Castro e mandaste depois colocar na Cascata dos Poetas nos jardins deste teu palácio… Outro horaciano, o esteta neoclássico Correia Garção, fundador da Arcádia Lusitana (1756) e director da “Gazeta de Lisboa” (17601762), também o mandaste prender sem culpa formada e acabou por morrer nas masmorras do Limoeiro por razões que só tu sabes. Incomodavam-te, talvez, versos como este: «O senhor opulento/ Ao seu pobre vizinho encurte o campo/ Que alegre cultivava; / Levantando soberbos edifícios, / Arranque as oliveiras…» Mas os seus poemas verberavam contra a opulência da mesma aristocracia que conjurou contra ti, Sebastião José, que não te perdoou nunca a tua fidalguia menos ancestral. Como vês – e nisso o Camilo tinha razão – o meu desapego não procedia «do afecto ao padre nem do desagravo da religião» – repara que nem aludi à ordem de Loyola – era, na verdade, de outra natureza.

Mas esta carta pretende ser de concórdia, “Concordia Fratum” diria até – para invocar a célebre pintura no tecto da sala do mesmo nome, atribuída a Joana do Salitre aqui ao lado. Ao longo dos anos fui procurando compreender-te e o vulto do estadista ímpar que foste, a áurea do iluminista preclaro, superou as titubeações de juízo advindas do teu lado lunar: gestos procedentes de um despotismo aqui e alia pouco esclarecido, convenhamos, que também existia em ti, foram relativizados face à emergência do reformador diligente da anquilosada administração pública portuguesa, das medidas de incremento económico e social, a reestruturação do ensino, o estadista de dimensão europeia que se sobrepôs a uma mediania satisfeita, que por sinal continua bem activa por cá, no decurso deste milénio terceiro após N.S.J.C. Acresce a isto o corajoso edicto de abolição da escravatura em Portugal Continental, o desmantelamento da Inquisição (mau grado tenhas criado uma outra à tua imagem), a laicização do ensino com as “aulas régias”, a reconstrução de Lisboa, os vinhos, os lanifícios um pouco por todo o país… Reconheço que foste vítima daquele sentimento consubstanciado na palavra com que Camões fechou o Canto X e último de “Os Lusíadas”. Eu mesmo sei o que isso é: a inveja muito pode para quem nada tem de seu para dar ao mundo. Criaturas miserandas que, por saberem que jamais figurarão nos anais da história, procuram em vão eternizar os fátuos momentos em que durou o seu néscio senhorio… Foi assim, não é verdade? “Vincit concordia fratrum”: diria até que tu mesmo vieste ao meu encontro e parece que sinto o eco dos teus passos quando o silêncio se instala neste teu Palácio em horas mais íntimas. E de quando em quando desces comigo até ao jardim, passamos o Terraço das Araucárias e, defronte à Cascata dos Poetas, recorro ao caderno de notas para te ler, diante de Neptuno, o soneto que Basílio da Gama te dedicou, quando eras já ministro decaído e advinda a “Viradeira”; no momento em que os que se aproveitavam da tua obra, tentavam apagar o teu nome e assinar por ti o edifício que construíste: «Não temas, não, marquês, que o povo injusto/ De teus grandes serviços esquecido, / Pelos gritos da inveja enfurecido/ Solicite abolir teu nobre busto». Mas o veredicto da História – o único juiz perante o qual estou disposto a inclinar-me – acabou por te fazer justiça. Caro Sebastião José: “mutatis mutandis”, temos afinal mais em comum do que seria de imaginar, não é assim?

 

* Escritor *
* O autor segue a ortografia anterior ao AO de 1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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