Desde a década de 80 do século passado, no mínimo, que todos temos consciência de viver no fio da navalha. E desde aí, apesar de nos recusarmos a assumir essa certeza, de que a Terra não aguentaria com toda aquela felicidade que o crescimento económico nos prometia, ela sempre nos acompanhou. Ainda assim, fosse qual fosse o motivo da nossa tristeza, havia sempre alguma coisa que poderíamos comprar para deslembrar tudo o que nos deixasse tristes. Como se a vida só existisse na infinidade das sequências de sucessos, festas e festivais.
Em África, as secas prolongadas matavam aos milhares de cada vez. Uns pela fome, outros pela guerra. Desencadeada pela fome, obviamente. Mas era lá longe, eram pessoas que nunca vimos, nem nunca chegámos a ver. A água de cada duche nosso daria para matar a sede a uma família na Namíbia. Mas como não lha podemos enviar, deixamos que nos escorra pelo corpo abaixo como se não houvesse amanhã. Depois, ainda calamos o nosso grilo falante com a desculpa de que são uns arrastados e nem governantes de jeito sabem escolher.
Aqui, nesta Europa, da justiça e do progresso, damos em eleger governos que nos resolvem qualquer problema. Não somos cá, nem nunca fomos, parece, dados a eleger governos que não nos resolvem nada. Só elegemos governos que nos constroem aeroportos, portos e estradas para podermos ir e vir, hospitais para nos curar, escolas para nos ensinar, exércitos para nos defender, barragens para armazenar a água que já não nasce em lado nenhum. Somos tão bons a escolher governos que nem precisamos de nos preocupar em fechar a torneira, desligar a luz ou o ar condicionado, porque os governos que temos hão de resolver qualquer coisinha, de menos bom, que daí advenha. Até porque, se não resolver, só temos que arranjar outro que resolva. Porque uma pessoa também não nasceu para viver à míngua. Seja lá do que for. Já que se vive, é para viver à grande.
Sempre assim foi e, quando não foi, passou a ser. No inverno, substituímos as camisolas interiores por mais cinco graus no aquecimento. No verão, os refrescos e as sombras, por menos dez graus no ar condicionado. Claro que, no fim, a única coisa que nos há de ocorrer é queixamo-nos da conta da luz. Esticámos as cidades, mas as estradas nunca são suficientemente boas para os nossos automóveis e o combustível está sempre caro demais. Introduzimos frutas tropicais nas saladas, natas nos bifes, marisco no arroz. Claro que, a seguir, queremos comprimidos, gratuitos, para baixar todos os níveis indesejáveis que acumulámos no sangue.
Mesmo sabendo, há décadas, como os recursos são parcos e que tudo o que é de mais faz mal, entre uma pera abacate, que engorda e consome água que se farta, e um pastel de nata, lembramo-nos lá disso! Nem disso nem das raposinhas, javalis, e dos outros animais todos (as plantas ainda não podem andar) que, só para matar a sede, arriscam ser abatidos à porta de uma casa qualquer, porque os rios vão secos. Secos na Namíbia, em África, e secos em Portugal, na Europa.
Mea culpa
“Somos tão bons a escolher governos que nem precisamos de nos preocupar em fechar a torneira, desligar a luz ou o ar condicionado, porque os governos que temos hão de resolver qualquer coisinha, de menos bom, que daí advenha. Até porque, se não resolver, só temos que arranjar outro que resolva.”