Reacendimentos inaceitáveis

“Foram muitos os reacendimentos de um fogo, que dizimou a serra sem piedade, que depois de extinto foi mal monitorizado e cujo rescaldo foi imperfeito”

«Oh Deus, olhai por nós!» escreveu uma residente de Valhelhas, dia 15, na sua rede social, enquanto o fogo chegava com grande intensidade à sua aldeia; «Ajudem-nos, por favor!» escrevia uma outra jovem, em Gonçalo, quando viu o fogo rapidamente chegar às portas da vila. «Acudam!», exclamaram tantas e tantas pessoas nas nossas aldeias quando, no dia da festa de Nossa Senhora da Assunção, o inferno desceu à terra e destruiu a natureza no vale do Zêzere e nas encostas das aldeias de Vale de Amoreira, Valhelhas, Famalicão da Serra, Gonçalo, Seixo Amarelo, Colmeal, Vale Formoso, Orjais e todas as outras povoações que viveram o pânico do fogo. O presidente da Câmara da Guarda deu eco ao clamor, pedindo ajuda ao país. Horas difíceis de um dia negro, em que o fogo engoliu a serra, em que se temeu pela vida e se perderam bens e sustento, em que um território verdejante de paz e ar puro, pereceu perante a força do vento e o poder das chamas. O ruído das labaredas foi mais forte que todos os gritos por socorro e mais rápido que a capacidade de respostas dos bombeiros, que salvaram as casas e as pessoas enquanto a serra ardia e a mais frondosa reserva ambiental desaparecia.
Uma semana depois de ter começado a arder, a Serra da Estrela foi de novo violentada pelas chamas. O reacendimento de Vale de Amoreira foi mais forte e violento que todos os outros reacendimentos que ocorreram nestes dias de tragédia e catástrofe para a região, para a natureza, para a nossa serra. Foram muitos os reacendimentos de um fogo, que dizimou a serra sem piedade, que depois de extinto foi mal monitorizado e cujo rescaldo foi imperfeito – com quinze mil hectares ardidos e metade da serra queimada, depois do fogo controlado, o trabalho não estava terminado, era preciso apagar todos os focos remanescentes que poderiam reacender as chamas e era obrigatória uma enorme vigilância pelos muitos quilómetros queimados. Se no incêndio que lavrou durante uma semana, que começou junto à praia fluvial da Vila do Carvalho por negligência de um grupo de jovens e cresceu de forma impressionante por toda a serra com erros inadmissíveis na gestão dos meios e no combate, o incêndio que deflagrou no dia 15 em Vale de Amoreira é um reacendimento inaceitável. Como o fora também o de Mizarela e Aldeia Viçosa, ainda que as autoridades digam que é um fogo “novo”, sem relação com o fogo que tinha sido dado como extinto na noite anterior – e que depois de controlado em Videmonte, foi mal feito o rescaldo e com os ventos fortes que se fizeram sentir, em especial nos cumes dos montes, conduziram a reacendimentos e o incêndio lavrou depois pelas encostas do Mondego.
Depois do imenso investimento, depois de tanto dinheiro atirado para as labaredas, sob a forma de gastos milionários em meios de combate, depois de tantos anos de incúria e abandono do campo, depois das mortes e destruição de 2017, não aprendemos nada? Os gastos no combate aos fogos da última semana são muito mais altos do que o orçamento do Parque Natural da Serra da Estrela… é tempo de planificar de forma diferente, de pagar às pessoas que vivem na “reserva” ecológica, aos pastores, aos agricultores, aos que querem viver e cuidar da serra – sairá muito mais barato do que continuar a gastar tanto dinheiro num combate que afinal se limita à proteção de pessoas e bens. Agora, é urgente atuar na vigilância, na limpeza das zonas queimadas (deixando parte dos troncos para combater a erosão), na reflorestação e organização de acessos. É muito mais fácil alimentar a narrativa dos incendiários do que monitorizar o fogo, do que vigiar, limpar e apoiar quem faz da serra o seu habitat – o fogo não aparece sozinho, aparece por acidente ou intenção, mas será sempre mais fácil reduzir o seu impacto se houver planificação e o mundo rural tiver vida. Queremos compromissos para o futuro, compromissos que passem por recuperar a natureza e salvar o futuro do meio ambiente e da vida na Serra da Estrela.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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