«…só a sua cabeça, sempre levantada, porque a não queria curvar. Poucos dias antes de morrer veio visitá-la o Dr. Eduardo Cabral, de Trancoso, filho do velho amigo que na prisão muito a tinha auxiliado, e morto no último combate Miguelista. Maria, ao encarar com ele, desta vez, chorou. – Então tia Pinta, a chorar? Chorar, agora, porque está doente? – Está enganado menino, eu não choro porque vou morrer, não tenho medo de dar contas a Deus. Choro porque queria que me enterrassem de pé. – Enterrada de pé, tia Pinta? – Sim, porque em vida ninguém me pôs o pé no pescoço, e não queria que mo pusessem depois de morta».
Morreu cinco dias depois, a 8 de fevereiro de 1880.
A Guerra Civil
Estávamos em meados do século XIX, e Portugal vivia um dos seus momentos mais trágicos. Decorria uma guerra civil, que dilacerava a sociedade.
Tudo começou em 1826, com a morte de D. João VI. Os seus filhos, D. Pedro e D. Miguel, são representantes de duas visões diferentes da sociedade, numa luta fratricida que irá dilacerar o país, ainda mal refeito da destruição provocada pelos franceses.
Os valores familiares, até ali tão respeitados, são esquecidos, e Portugal transforma-se numa fogueira, que parecia não ter limites na sua crueldade. Pais, filhos, e irmãos vivem ódios e paixões exacerbadas.
Os pais de Maria Pinta
Maria Pinta, nasceu em Celorico da Beira, no dealbar do século XIX. Os pais, Bernardo Pinto e Maria Leonor Drey, de origem judaica, eram relativamente abastados. Apesar disso, Maria era analfabeta. Os pais, até aí sempre unidos, andavam desde o começo da guerra civil profundamente desavindos e irão viver um drama que irá envolver toda a família. É que, se Bernardo era um partidário ferrenho dos “constitucionalistas”, Maria Leonor ainda o era mais, mas pelos “absolutistas”.
Uma noite, encontrando-se Bernardo em grande perigo, chamou sua filha Maria, a quem confessou que estava perdido se ela não cumprisse rigorosamente o que ele lhe pedia. Que seguisse para Fornos de Algodres, pedia-lhe, com um papel para o “Fidalgo Marechal”.
Com a promessa de segredo e porque o dito papel apenas tinha sinais codificados, contou-lhe o seu conteúdo, e a sua importância.
– E que venhas cedo, recomendou.
A prisão de Maria
Maria, sabendo que a vida do pai dependia da sua diligência, como ele próprio lhe dissera, tirou o tamanco, escondeu a missiva na meia, e partiu, acompanhada de Francisco, o seu criado de maior confiança.
Não sabiam é que Leonor, apesar do avançado da hora, estava à escuta.
Esta, esquecendo que era esposa e mãe, partiu de imediato fazer a denúncia ao aquartelamento miguelista.
Apanhados de surpresa no caminho, Maria negou, mas o bilhete comprometeu-a, irremediavelmente. Ameaçada de fuzilamento, afirmou preferir a morte a denunciar o pai. De imediato, sob escolta, seguiu para a cadeia de Celorico. Por lá ficará seis anos e meio.
O criado, que no meio da confusão tinha conseguido fugir, correu a avisar o amo, e que com sua ajuda conseguiu fugir por um alto muro da casa.
Apareceu morto, dois anos depois, na mesma estrada onde a filha fora apanhada.
A guerra, que redobrava de intensidade, tinha reduzido a família à maior das misérias. Maria, já presa na cadeia, que não passava de um pátio triste e misero, apenas tinha um banco para se sentar, uma pequena cama para dormir e um Santo António alumiado à cabeceira, de aconchego. Em condições ignóbeis, ia fiando e fazendo meias, ajudando as suas irmãs mais novas, Raquel e Estrela. À mãe, sabendo que tinha sido denunciada por ela, nunca mais lhe quis falar, mas, apesar de tudo, repartia com ela o pouco que tinha. Foi por essa altura, que o “Marechal” terá tido conhecimento da fuga de Bernardo e da prisão da filha, prestes a ser fuzilada.
O marechal
Depois das maiores atrocidades, a guerra terminou saindo vencedora a causa de D. Pedro.
É nessa altura, que se abrem as portas de Celorico, sobre um montão de sangue, e o “Marechal” entra triunfante e cheio de glória naquele bocadinho de terra, que ele tanto adorava e por quem tão bem soubera lutar.
A sua visita à cadeia e o seu encontro com Maria, então com 23 anos, dizem ter sido mágico.
Não se sabe ao certo o que teria havido entre ambos, só eles. Mas as lágrimas de Maria teriam sido muitas.
Foram os braços fortes do “Marechal” que abriram as portas da cadeia, e foi ele que empurrou a cadeirinha, onde ela tolhida de pernas e já quase sem saber andar, foi levada para a liberdade.
Maria era, diziam em Celorico, a sua relíquia. Pouco depois, com a ajuda do “Marechal”, Maria montou uma pequena hospedaria, talvez na rua do Poço.
Nobreza de caráter
Embora a guerra civil já tivesse terminado, as perseguições continuaram, havendo verdadeiras quadrilhas organizadas que aterrorizavam a região.
Uma noite, estando Maria já deitada, batem-lhe à porta, aflitivamente.
– «Abre Pinta, salva-me que estou perdido. Espreitou pelo postigo da porta, e reconheceu um dos seus maiores inimigos, e que mais a afrontara na cadeia.
Diz-lhe Maria: O senhor, aqui?
– Salva-me Pinta, que me querem matar!
Maria, sentindo o barulho da guerrilha que o procurava, ordenou-lhe que se deitasse debaixo da cama.
Quase de imediato era a voz do “Marechal”: – Pinta, abre, estás em perigo! Entrou um facínora.
– Aqui não, senhor “Marechal”, mas mande revistar a casa.
Quando já só faltava o seu quarto, o “Marechal”, intervindo, ordenou: “No quarto da Pinta não se toca, é sagrado!”
Sentindo que o perigo passara, Maria levantou a cobertura da cama e disse ao seu antigo carrasco: Agora, saia imediatamente!»
Ele ajoelhou-se a seus pés e beijou-lhe o vestido.
Ele saiu e na manhã seguinte apareceu morto, ali perto, com as orelhas cortadas à espada.
O Hotel Maria Pinta
Os anos passaram, a modesta estalagem da Rua do Poço já era um “hotel”, agora no prédio que foi de José Morgado da Cruz, em S. Pedro. A sua velha tia Raquel, que tinha ido buscar a um palheiro onde, por esmola, dormia, era agora a sua única família.
As suas inocentes irmãs tinham morrido carbonizadas num palheiro junto da sua casa, onde se tinham refugiado transidas de medo.
O tenente António Campos, do Regimento de Milícias de Trancoso, que por ela se tinha apaixonado, e a tinha atraiçoado, foi justiçado pelo povo de Celorico. Foi encontrado morto, «como um cachorro danado», na estrada principal, com uma profunda ferida no lado esquerdo e os olhos esbugalhados. Embora pertencendo a uma das principais famílias de Peniche, foi-lhe recusado enterro em terra santa, na terra da Pinta, que ele tinha vilipendiado. Foi devolvido a Peniche!
Nota: Boa parte desta história tem como base um manuscrito a que o ilustre professor Ramos de Oliveira teve acesso, já lá vão cerca de 100 anos.
O “Marechal”, como no texto é referido, é Luiz de Sá Osório de Albuquerque e Mendonça. Natural de Celorico da Beira, foi um militar distinto, tendo tomado parte em numerosas batalhas em Portugal e no estrangeiro. Embora aqui tratado por Marechal só acedeu a esse posto em 1860.
Quando morreu, em 25 de março de 1871, foi-lhe prestada homenagem por uma força do Regimento de Infantaria 12, aquartelado na Guarda.
* Investigador da história local e regional