Luis*

Habituei-me a perceber os outros fundamentalmente por um número restrito de qualidades, ou falta delas. E, mais ainda, pela coerência dos seus actos relativamente às suas palavras ou às suas convicções.

1. Oi gente! Temos um governo socialista que é show de bola mesmo! Mas que bagunçada, caras! E que vai acabar em pizza, certo? Costa não tem vergonha, não! Vê-se que o cara está cheio de caqueado, e faz de conta que leva isto a sério! Mais um santo de pau oco! O Nuno barbudo, com alguns pós de garrafada, queria ser PM certinho, e com muita aeromoça! Mas só consegue caçar barulho, méirmão! O PS ainda puxa pela galera que vota nele! Mas já não pega pra capar como dantes! E cadê os ministros? O da fazenda defendeu direitinho a sua bandeira. Mas o cara joga só para que entrem no caderninho do seu ministério. Catarina, que minina embaçada! O seu visual mixuruca não deu certo, e agora virou escuteira mirim! Duas secretarias de estado nem chegaram a picar a mula! Uma pegou meio milhão e outra pegou fogo, gente! Puxa, que desaforo! E o da educação, minha nossa, parece que as encrencas viraram gigantes pra ele! Que pão duro, rapaziada! É o novo bobo de pancada, só que mais puxa saco! A da coesão, mas que chata de galocha, pessoal! Está bem para os garotões urbanos arroz de festa! A minina chora por tudo e não serve pra nada ! Mas que besteira sem jeito! A Mariana está pagando pau pró Costa, galera! Todo mundo já percebeu! Isto não vai dar certo, não! E pronto, amanhã pegarei as previsões astrológicas que falei pra vocês! Antes que a jiripoca vá piar, seus babacas!
2. Habituei-me a perceber os outros fundamentalmente por um número restrito de qualidades, ou falta delas. E, mais ainda, pela coerência dos seus actos relativamente às suas palavras ou às suas convicções. Ora, como se costuma dizer, aqui é que a porca torce o rabo. A precaução assume especial acuidade no caso das convicções políticas mais ruidosas. E que nada tem a ver com uma consciência política exigente e iconoclasta. Deixemos agora de parte esta última questão. Refiro-me às contradições flagrantes entre o discurso e a prática, entre o acolher de slogans que enchem o ouvido e a sua negação no dia a dia. O fenómeno assume particular gravidade naquelas pessoas que perfilham ideários onde pontua a “generosidade”, a “solidariedade”, a “qualificação”, o “respeito pelos outros”, etc. Conheço várias pessoas que se enquadram nesta descrição. No entanto, as suas acções não só desmentem como parodiam as suas inefáveis convicções. Alguns nem hesitam em enganar, abandonar os outros precisamente quando estão mais expostos e mais frágeis, mover-se exclusivamente por interesses egoístas, etc. Toda uma escola de “virtudes” onde só é enganado quem quer…
3. Todos exaltam as ovelhas negras. Já viram alguém identificar-se com as ovelhas “normais”, obedientes e gregárias? Seria uma humilhação! Mas porquê? Suponho que, na era da individuação extremada, potenciada pelas redes sociais, todos se acham “diferentes”, “rebeldes”, “clarividentes”, “irredutíveis”, “mestres do inconformismo”, “originais”, “mais esclarecidos”, “mais progressivos”, etc. É uma espécie de autoavaliação em roda livre. E que nada tem a ver com a verdadeira autonomia. Na verdade, se essas preferências fossem transpostas para as populações ovinas, haveria uma inversão numérica. Ou seja, as ovelhas negras seriam a regra e as outras a excepção. É claro que, mal a estatística fosse detectada, imediatamente os “diferentes” mudariam de cor. Já agora, como é possível haver tantas ovelhas negras num país de mansos indignados? A singularidade de uma ovelha negra não é decalcada das outras? O que seria dela sem as suas companheiras “claras” em redor? E não fazem, afinal, todas parte do mesmo rebanho?
4. Ao contrário do que muitos julgam, a cultura e o conhecimento não são simples adornos. Quando evoco no meu íntimo as imagens e as impressões que ficaram de um livro, de um filme ou de um concerto, tomo-as como instrumentos que encorajam a clareza, a proximidade, o músculo interpretativo. Companheiros de viagem que ajudam a errar melhor (grande Beckett), a encontrar os ditosos personagens que não foram convidados para a festa, a isolar a esperança quando ela se torna simples espera, a instalar-me no mundo para melhor o aceitar. Mais cedo ou mais tarde, tudo isso acaba por ser para os outros. Poderia ser de outra forma?

* No calendário das árvores celta corresponde à sorveira
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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