Camões olha a Ribeira. Local de onde zarpou, em 1497, a primeira armada para a Índia. Mais tarde, «o Tejo estava atulhado de embarcações: naus, galeões, caravelas, a floresta de mastros de que falava Cervantes». (1)
Hoje, cacilheiros, iates e, num toca e foge, cruzeiros maiores que os prédios da marginal, atulhados de excursionistas.
Para turismo falta “tempo”!
«No porto, nas ruas, nas praças, cheias de gente a pé ou a cavalo, nos bazares, nos estaleiros, nos armazéns a azáfama era constante. As ruas e praças transbordavam de gente». (1)
Hoje, magotes de turistas seguem o megafone do guia, cruzam-se e entrecruzam-se, empurram e são empurrados por magotes em sentido contrário, na mesma labuta de olhar sem ver e ouvir sem escutar. Os locais nem sabem onde estão, nem para onde vão, atordoados com tanto ruído, gentio e sucesso da “sua cidade”. Pressa, buzinas e trânsito. «…não há uma via rápida, uma avenida, uma rua, nem mesmo o Beco da Triste e Feia, em Alcântara, onde não haja um radar emboscado a contribuir não para a segurança rodoviária, mas para o assalto fiscal aos condutores, … disputando o exclusivo dos tuk-tuks e das trotinetes, …” (2)
Portugal, terra de gente arredia à justa medida. Ou oito ou oitenta, diz o povo!
«Mouriscos, Castelhanos, Catalães, Galegos, Flamengos, Venezianos, Judeus conversos que agora se chamavam Cristãos-Novos, escravos de todas as cores, vindos de África, da Índia, do Brasil». (1)
Hoje, cerca de cem nacionalidades, alguns escravos dos tempos modernos. Uma babilónia de línguas, sem tempo nem espaço para nos escutarmos uns aos outros.
«… em certos dias, os feitores da casa da Índia não conseguiam assentar todo o dinheiro que entrava, nem registar todas as mercadorias descarregadas». (1)
Hoje, os contadores de «moedas» vêem-se gregos para anotar as taxas turísticas, derramas e parquímetros. Sempre o mesmo para o umbigo do país. Mais museus, mais hotéis, mais alojamentos locais, mais metro, mais uma ponte, um novo aeroporto…mais “Tuk-Tuks”, mais gente, mais confusão. “Mais turismo, mais progresso”, dizem os governantes.
Não ouvem o povo quando diz “não há bem que sempre dure” ou o bom senso quando recomenda “não pôr os ovos todos no mesmo cesto”.
«…havia livreiros que não só vendiam livros, como os alugavam aos estudantes pobres». (1)
Hoje, em Lisboa, não conseguem viver os professores, quanto mais os alunos!
«… que, “sem querer estar como amos”, (…), se fazem ladrões e tafuis, e outros maus costumes, e não têm outras pousadas se não debaixo das tendas da Ribeira, onde se agasalham de noite, …» (1)
Hoje, sem abrigos aqui e mais além, nas entranhas de obras do sucesso ou no vão de escadas a que todos, (muito sensíveis!), fazemos vista grossa.
«… acumulava-se em Lisboa uma juventude ociosa, mas cheia de vitalidade, que embarcava ou esperava embarcar, que desejava afirmar-se fosse no que fosse, mas passava o dia de espera, no meio de desacatos e disputas». (1)
Hoje, a juventude anda ansiosa. Anseia por embarcar. Estimulam-na a embarcar.
Outros ficam.
Alguns, em juventudes partidárias e claques de futebol adotando modernos códigos de boas práticas e boa conduta.
«…, onde uma pequena multidão de carpinteiros, calafates, ferreiros, cordoeiros, e outros mestres se afadigavam a reparar e a construir embarcações». (3)
Hoje, algumas «lojas de bugigangas, Kebab, expresso-lab, estúdios de tatuagens e de unhas, bistrôs, fast-food, barbearias, hotéis, algumas lojas vazias…. Numa esquina, vários “vendedores ambulantes” oferecem abertamente marijuana a quem passa». (4)
«No largo do Pelourinho Velho, … não detinham nenhum cargo oficial, mas funcionavam como uma espécie de notários, ou escrivães, atendendo todos aqueles que precisassem de ajuda para redigir cartas, discursos, petições, contratos, epitáfios e até poemas». (1)
Hoje, no blogue ou jornal, telefonia ou televisão e até nas redes sociais, desdobram-se em loas, preces e sugestões em causa própria ou alheia. De forma expressa, que a discrição é valor sem cotação nos tempos de hoje. Levam letra, o poema de Geraldo Vandré quando diz: «Quem sabe, faz a hora não espera acontecer». Camões usava termos como memória ou gratidão, manifesta-se em retorno de favores ou mercês.
«Lisboa fazia-se soberba e ostentadora». (1) Agora também.
Não mudou o tempo, nem a vontade. Digo eu.
* Médico
(1)Capítulos 5 e 6, pág. 75-100: Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, (Biografia de Luís Vaz de Camões); Isabel Rio Novo; 1ª ed Junho de 2024.
(2)Miguel Sousa Tavares, Jornal Expresso, 23/8/2024.
(3)Majestade e grandezas de Lisboa, 1552, Arquivo Histórico Português, XI, Lisboa, 1916, pág. 240.
(4)Michael Hagedorn, Jornal Publico, 18/08/2024.
Palavras dos outros:
1) O humor é um dos lubrificantes fundamentais de uma democracia saudável. José Miguel Tavares, Jornal Público, 22/8/2024.
2) Se tu fores ver o mar…o Fausto já irá longe, sempre perto, a navegar, navegar. Júlio Isidro, Jornal Tempo Livre, nº48. JUl-Ago2024.