Do “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ao” Equilibrium”, de Kurt Wimmer, passando pelo “1984”, de George Orwell, todos os regimes totalitários distópicos nos causam confusão. Há um lado positivo, pois prevalecem a segurança e a ordem. Mas, por outro, as liberdades individuais foram suprimidas, com o “status quo” a ser perpetuado através de um sistema de repressão permanente, onde cidadãos obedientes auxiliam as forças policiais no cumprimento do seu dever.
Por entre as paisagens cinzentas que servem de pano de fundo a estas narrativas futuristas, é difícil de encontrar uma gota de felicidade na vida das personagens e o humor está completamente ausente das suas rotinas monótonas. Embora possa à primeira vista não parecer, o humor é uma das características fundamentais das sociedades livres. Fazer rir o próximo é uma prática corrente do dia-a-dia e existem modalidades para todos os gostos. Desde comédias televisivas, a espetáculos de “stand-up comedy” no teatro ou no bar, passando por sketches na rádio, anedotas no café, até às “bocas” no grupo de amigos. Rir faz bem e o humor desempenha um papel social insubstituível.
É por isso que, nas sociedades livres, reconhecemos a importância do trabalho desempenhado pelos profissionais destes setores e manifestamos a nossa revolta e a nossa solidariedade sempre que algum deles é vítima da intolerância e do fanatismo. Foi assim em 2015, quando o mundo democrático expressou, em uníssono, a sua indignação pelo assassinato dos elementos da revista satírica “Charlie Hebdo”.
Mas, desde então, muita coisa mudou. A começar pelo próprio mundo democrático. Do seu ventre, nasceu uma cultura de cancelamento que está a trespassar todos os setores da sociedade. Esta onda desvirtuada e extremada do “politicamente correto” viu uma oportunidade de expansão e não a desperdiçou. Colocou em sentido os discursos políticos, perfurou a academia, abalou as mais diversas relações organizacionais e laborais da sociedade e chegou agora às portas do humor. A estratégia para censurar e condicionar as diversas práticas humorísticas é simples: considerar como sério o que, pela sua própria definição, não é sério.
Uma comédia não é um documentário; é um programa de ficção. Uma caricatura não é uma fotografia ou um retrato; é uma visualização que exagera determinadas características. Uma anedota não é um relato histórico; é uma descrição fictícia. Uma piada de um humorista não é um discurso de uma figura de Estado. O objetivo de todas estas práticas não é ofender ninguém, mas sim fazer-nos rir. Rir dos outros (como os outros se riem de nós) e rir de nós próprios.
Temos agora batalhões de cidadãos obedientes a uma cartilha que vê injustiça e desigualdade em todo o lado a autoproclamarem-se capazes de identificar ofensas em causas alheias. As suas armas de eleição são a exposição pública e os julgamentos morais, sobretudo no espaço digital. Num mundo dominado pelas redes sociais, onde quase todos publicamos, comentamos e partilhamos, não são apenas os profissionais do humor que estão sob a mira desta nova “polícia moral”, cujos “agentes” se entretêm a ditar sentenças confortavelmente resguardados atrás de um ecrã.
Seja nos livros, nas salas de cinema ou nos ecrãs de televisão, os retratos das sociedades totalitárias distópicas desempenham um papel pedagógico inigualável, motivando-nos a valorizar as sociedades livres em que vivemos. Um bom passo será continuarmos a rir e a fazer rir, como sempre fizemos. Afinal, como diz o povo e muito bem: “Rir é o melhor remédio”. Esperemos que assim continue por muitos e bons anos!
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