1. A forma como os canais televisivos noticiam a vaga de incêndios que assolou a pátria dá azo a algumas reflexões. Logo à cabeça, parece que o país da bolha urbana e mediática descobre um outro país de que não se fala no resto do ano. A não ser como cenário de um crime, ou de uma catástrofe natural. É o país das pequenas povoações alcandoradas nos montes, dispersas nos vales, ou aglomeradas nas planícies. Das vilas com nomes exóticos, com ressonância medieval. Das vivendas à emigrante e das ruas sem história. Das pessoas rudes, mas afáveis – que o Herman nunca convidaria para os seus programas recheados de celebridades do espectáculo – que defendem com unhas e dentes os seus pertences: uma casa, um palheiro, uma horta, um pomar, um lameiro, uma barraca de arrumos, uns animais, utensílios diversos. São os “populares”, essa massa que emoldura campanhas eleitorais e coros de tragédia. Em segundo lugar, as reportagens são “case study”. Os “enviados”, geralmente estagiários ou repórteres ad hoc locais, dão viva voz à sua veia poético dramática. As descrições que fazem dos incêndios aproxima-os de críticos de arte analisando quadros de Turner. A ambivalência do fogo, destrutiva e redentora, destrava as línguas. Ontem, um repórter, depois de descrever «as manchas multicolores, em tom alaranjado, que realçavam os montes coroados de labaredas, como sombras chinesas», meteu-se por caminhos mais de outro mundo. Foi quando evocou as chamas que, por «acção demoníaca», ameaçavam uma inocente capelinha no cimo dum monte. Nem Camilo faria melhor.
2. A rejeição de uma identidade política, construída com base na segurança das capelinhas, pode tornar-se incompreensível para os desatentos. Na sua azáfama de colmeia, etiquetam quem o faz na categoria dos “deslocados”. Uma arrumação conveniente, é importante dizer. Que pode ser vista como precaução séptica. É que os pequenos poderes reproduzem os grandes, na exacta proporção da sua insignificância. Podem até, num exercício recorrente, justificar-se a si próprios, pela presença desses “deslocados”. Provando assim que não são tão sufocantes ao ponto de absorver tudo. Até porque o “deslocado” é aquele que constrói para si uma pequena esfera de autonomia dentro do sistema, sem de lá sair, mas beneficiando das vantagens materiais que este oferece. Tornando-se assim numa espécie de rebelde de luxo. Que os grupos dominantes albergam sem problemas e, por vezes, usam como bandeira. O Anarca é outra coisa. Usa uma disciplina interior, um trabalho em profundidade sobre si mesmo, que é inalcançável ao “deslocado”. E imperceptível aos oligarcas.
3. Os desaires sentimentais, ou em vernáculo, tampas, são eventos extremamente pedagógicos. Mas as suas virtudes proactivas não se esgotam aí. São também o momento certo para um “check up” completo à nossa fragrância emocional. Alguns indicadores prévios: perseguiste as tuas emoções sem deixares que elas te iludissem? Fizeste-o sem batota e sentimentos postiços? Expuseste os teus afectos a condições extremas e resistiram? Disseste sempre a verdade? A intensidade das palavras que usaste serviu tão somente para acomodar os sentimentos, eventualmente poli-los? Se passaste no teste, nada tens a temer. Mas bateste com o nariz na porta? Levaste para trás? Sorri, dá meia volta e aligeira o passo. Repartir o pão, o sol, a morte, como escreveu Octavio Paz, não é para todos. No final, adocicas o cinismo. Estendes partículas de silêncio sobre o lençol infinito da alma. Ficas intocável.
4. As redes sociais são o “panopticum” dos tempos modernos. Jeremy Bentham, em finais do séc XVIII, imaginou este dispositivo de vigilância distópico. Pensado como modelo para prisões e hospitais psiquiátricos. Onde as celas, dispostas em círculo, em volta de um posto de observação, estão abertas para o centro. Os prisioneiros são permanentemente vigiados, sem verem os carcereiros. Foucault faz referências abundantes ao dispositivo, em “Vigiar e Punir”. Neste caso das redes sociais, as posições variam constantemente: à vez, todos observam e são observados.
5. A poesia, como a música, não é inocente. Também cantou feitos militares e a morte. Alguma considerada da melhor. Ao som da música marcharam soldados; Wagner e Beethoven foram banda sonora da infâmia nazi. E contudo… O ritmo de um verso desconcerta o ritmo do poder: para tanto, só é preciso que bata no tempo fraco deste com o seu tempo forte. O poder acaba por vencer o poeta, mas não o efeito do poema.
* No calendário vegetal celta, significa “hera”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia