Todos nós vimos as imagens de um joelho assassino a asfixiar o pescoço de um homem. Todos nós fomos testemunhas impotentes desse homicídio. Todos nós nos indignámos com o método e com a desproporção entre o alegado delito e o castigo à margem de todo o direito e de toda a justiça. E quando digo todos nós, digo homens e mulheres em quem restar ainda no sangue um pingo de humanidade e de dignidade, não importa a cor, a crença ou o credo ideológico.
Enquanto um joelho assassino asfixiava o pescoço de um homem negro, alguns de nós víamos, com maior ou menor nitidez, o racismo a espreitar atrás da roda de um carro, as feridas seculares de um país de novo abertas, expostas sem máscara ao olhar de todo o mundo, a prepotência e a segregação levadas ao limite da abjecção e da arbitrariedade. A prepotência de gente para quem a autoridade se confunde os heróis da Disney ou da Marvel, de gente que confunde a justiça com o justiceirismo dos westerns ou sonha ser actor e alcançar o óscar da glória em séries de autopropaganda como Cops ou reality shows onde o real é afinal um patético arremedo da vida, onde a ganância, a mesquinhez, quando não o ódio e a injustiça saem sempre triunfantes. Uma boa parte da América não conhece outro real para além daquele que os videogames lhe servem quotidianamente e acriticamente mimetiza ou Holywood lhe faz entrar pelos olhos enquanto vai mastigando pipocas.
Tal como milhões de pessoas em todo o mundo, também eu me indignei com as circunstâncias da morte de George Floyd. Tal como milhões de pessoas em todo o mundo, também eu tive vontade de dizer Basta! e vir para a rua gritar não tanto “contra” o racismo mas “a favor” da dignidade humana e da justiça que não pode conhecer cor, etnias, condição social ou orientação sexual. A causa era justa e o contexto particular de pandemia tornava-a escandalosamente gritante. Impossível de esconder. Tal como muitos outros acreditei que alguma coisa teria de mudar desta vez, desde logo porque esta era uma causa global, uma causa de união e de justiça que extravasava as fronteiras de um oceano.
Assisti com preocupação ao curso dos protestos e à marcha dos manifestantes, às palavras pacificadoras da família de Floyd. Literalmente um fluido (sangue, urina ou medo) derramado sobre o asfalto, um corpo liquefazendo-se, cada vez mais nítido ao nosso olhar, Floyd tornou-se um rio de indignação e revolta, um caudal de gente procurando desaguar na justiça e na mudança. Um corpo unido, movendo-se pelas ruas, tomando conta da cidade. Uma voz líquida, cada vez mais impossível de silenciar.
É certo que alguns se aproveitaram para provocar uma onda de destruição e violência, de pilhagem e de ódio, mas esses pareciam ser infiltrados, apostados apenas no absurdo do caos, na lógica da guerra e da radicalização que apenas beneficia os detentores do poder, comprometendo qualquer possibilidade de mudança. Em relação a esses, esperei a actuação pronta da justiça e da lei.
Ao longo dos dias, assisti com espanto e não menor indignação, nos Estados Unidos e deste lado do Atlântico, a cartazes onde se incita ao ódio e a novas formas de racismo, ao desfile de gente para quem “o bom polícia é um polícia morto” ou investe em novas formas de injustiça ao confundir a parte pelo todo e afirmar ser a “polícia assassina”.
Nestes últimos dias, temos sido confrontados com a pichagem e derrube de estátuas nos Estados Unidos e noutros lugares do mundo. Olha-se para estas imagens e percebe-se que alguma coisa se perdeu na tradução. Que alguma coisa escapou à ignorância de alguns que julgam poder desinfectar a História com lixívia ou álcool gel ou colocar máscaras FFP3 na memória colectiva. Que julgam poder fazer restart no tempo e na História e viver em autocontemplação narcísica um presente confinado, sem memória nem horizonte de futuro.
Vandalizar a estátua do Padre António Vieira é não apenas um gesto de fundamentalismo radical, venha ele de onde vier, mas sobretudo de profunda ignorância de gente que desconhece, porque certamente nunca os leu, os textos que o jesuíta escreveu. Entre outros, as Cartas do Maranhão, escritas em 1654, e dirigidas ao rei D. João IV. Porque se os lesse, saberia o quanto o Padre António Vieira defendeu e lutou pelos direitos dos índios no Brasil que, de resto, lhe chamaram Payassu (“Grande Padre” ou Grande Pai”), o quanto combateu (e denunciou) a exploração e a escravatura, enfrentando todos os poderes: “O remédio, pois, senhor, consiste em que se mude e melhore a forma porque até agora foram governados os índios”, escreve o Padre António Vieira, ao mesmo tempo que redige dezanove propostas concretas de mudança. Entre elas, a do direito às suas terras, à remuneração do trabalho ou advogando “que os governadores e capitães-mores não tenham qualquer jurisdição sobre os ditos índios naturais da terra, assim cristãos como gentios, e nem para os mandar, nem para os repartir, nem para outra alguma coisa”. Saberia igualmente que o Padre António Vieira defendeu os judeus e se opôs à divisão entre cristãos-novos e cristãos-velhos ou enfrentou a Inquisição, vindo a ser preso em 1665 sob a acusação de “proposições heréticas, temerárias, mal soantes e escandalosas” e condenado a auto-de-fé em 1667. Viria a ser perdoado em 1668 por súplica da Companhia de Jesus ao Tribunal do Santo Ofício.
A história não se pode reescrever nem mudar, mas torna-nos mais responsáveis no presente para que não se repitam os erros do passado. Exige de nós e das gerações futuras memória e rigor crítico, pelo que os radicalismos de hoje não podem ser combatidos sem um conhecimento da História, da Cultura, da Literatura, das Humanidades em geral. A violência, como mostrou Hannah Arendt, talvez seja uma consequência da ignorância do homo videns, do herói tecnológico em que nos transformámos.
Os ataques sucedem-se de um e do outro lado da barricada que entretanto se foi constituindo. A direita acusa a extrema-esquerda e a esquerda acusa a extrema-direita. Enquanto as balas sobrevoam um e outro campo e as posições se extremarem, o racismo continuará a seguir o seu curso. A prepotência e a violência também. Os assassinos de George Floyd agradecem.
*Professora de Literatura Portuguesa na Universidade do Minho