Dizia Putin pretender a “desnazificação” da Ucrânia. Muitos dos meus amigos de esquerda no Facebook levam esse objetivo a sério e partilham furiosamente imagens do Batalhão Azov. Eu costumo dizer-lhes que desse batalhão só espero uma morte gloriosa na defesa da sua pátria, ou que então temia que Putin viesse atrás de todos os nazis, neonazis e extremistas de direita até Portugal (Ventura e Mário Machado que se cuidem), ou ainda que Putin devia começar por limpar dessa escumalha a sua própria terra, mas nada. Por eles está bem assim: há neonazis na Ucrânia e a guerra está justificada; Zelensky não faz nada para libertar a Ucrânia dessa ferida companhia? Não se preocupem, o tio Putin vai aí resolver-vos o problema.
Quando se sentem esvaziados de razões mudam para o argumento a que Kasparov (em “O Inimigo que Vem do Frio”, de 2015) chama “whataboutism”, neologismo traduzido na edição portuguesa para “eentãoismo” e se reduz a isto: a pessoa com quem falamos de um assunto incómodo, como a guerra na Ucrânia, responde-nos com algo como “e então a invasão do Iraque?”. Isto serve, evidentemente, apenas para desviar a conversa para terrenos mais favoráveis e evitar falar do assunto do momento. Não adianta também falar das atrocidades cometidas em Bucha que passamos rapidamente a discutir teorias da conspiração (“foi o Batalhão Azov e a imprensa ocidental está toda comprada”). Se pedimos fontes de informação respondem que “toda a gente sabe isso”, e olham-nos com pena, ou então atiram-nos com vídeos do YouTube com gente de quem nunca se ouviu falar a debitar, adivinharam, mais teorias da conspiração.
Entretanto, estamos a dias das eleições em França. Marine Le Pen, filha de um negacionista do Holocausto, notória fascista, tem pela primeira vez uma oportunidade de ganhar. Não gosta da União Europeia nem da NATO, tal como Putin, a quem deve dinheiro (Trump também).
Chamei fascista a Le Pen, mas convém precisar os termos e evitar abusar das palavras ou cair em generalizações. Se perguntarmos a muita gente o que é um fascista, ou um nazi, não iremos ouvir uma definição exacta. Sugiro as seguintes pistas: nacionalismo, autoritarismo, em geral na forma de um poder ditatorial, falta de uma imprensa livre e da generalidade das liberdades civis que damos como adquiridas, forte controlo pelo governo da sociedade e da economia. O nazismo será tudo isso, mais a eugenia e o racismo. Também se definiam como anticomunistas no tempo de Hitler e Mussolini. Agora, esgotado esse inimigo, escolhem como principais adversários os liberais (os democratas nos EUA e os centristas, de direita ou esquerda, na Europa).
Para nossa possível desgraça, a esquerda não liberal partilha com eles (Trump, Putin e Le Pen) muitas das principais bandeiras: o ódio à NATO e à UE, uma certa apetência pelo autoritarismo, um certo nacionalismo, desconfiança em relação aos meios de comunicação social de referência (que Trump classifica por sistema no grupo das “fake news” e que os comunistas acusam de publicar apenas “o que manda a voz do dono”). Por outro lado, se uns são inimigos dos judeus, outros são-no de Israel.
E Putin, em que fica no meio disto tudo? O regime em que ele acredita não tem ideologia nem classes. Tem uma estratégia de apropriação de recursos para ele e para uma clique corrupta e precisa do poder para poderem todos continuar nisso a vida toda. Para isso precisa de autoridade absoluta, sem oposição ou imprensa independente. Para ele, perder as eleições é perder tudo e por isso não aceita eleições livres. Por isso também mata ou encarcera todos os que se lhe opõem.
Imaginam Trump a ganhar as eleições daqui a dois anos, com o apoio de Marine Le Pen e de Putin? Que mundo teremos então?
Fascistas e Nazis
“E Putin, em que fica no meio disto tudo? O regime em que ele acredita não tem ideologia nem classes. Tem uma estratégia de apropriação de recursos para ele e para uma clique corrupta e precisa do poder para poderem todos continuar nisso a vida toda.”