Factos alternativos

Escrito por António Ferreira

“Os factos alternativos de que a direita gosta, numa prática que consiste em adequar a realidade aos seus desejos, estão aqui bem exemplificados.”

Passos Coelho e mais uma dúzia de ratos de sacristia acham que algumas das conquistas civilizacionais das últimas décadas são afinal um ataque à família tradicional. Esta tem adversários que pretendem a sua destruição, dizem, sem esclarecer de que adversários se trata. Chega-se lá por exclusão de partes e são eles os que defendem o direito ao aborto, ao casamento entre homossexuais e a possibilidade destes adoptarem, são os defensores do direito à eutanásia, dos direitos das mulheres para além da sua redução à condição de donas de casa ou ainda os defensores do planeamento familiar. Serão certamente mais mas estes são os que fui capaz de identificar sem me forçar a comprar e ler o livro.
Os factos alternativos de que a direita gosta, numa prática que consiste em adequar a realidade aos seus desejos, estão aqui bem exemplificados. É que ainda não vi ou ouvi ninguém, mas ninguém, dizer que é contra a família tradicional, composta por um homem, uma mulher e os seus filhos. Ninguém quer obrigar as mulheres a abortar, ou tornar a eutanásia obrigatória. Se um casal quiser ter dez filhos apenas receberá o agradecimento geral da nação. A eutanásia de um canceroso em estado terminal é uma opção sua, e só sua. No fundo, o que incomoda essa triste companhia de reacionários não são os valores dos outros, é quererem impor os seus e já não poderem fazê-lo. Vai aliás fazer cinquenta anos que acabou esse tempo.
Outro facto alternativo é o da diminuição da receita do IRS em 1.500 milhões de euros. Dizem que nunca foi claramente prometido que à diminuição do IRS constante do Orçamento Geral do Estado para 2024 se somaria uma diminuição suplementar de valor equivalente, promovida pela AD, mas no debate entre Montenegro e Pedro Nuno Santos aquele falou de um desagravamento do IRS em 3.000 milhões. Falamos em Direito da teoria da impressão do destinatário, que significa que uma declaração negocial tem o valor que lhe dá o normal declaratário (aquele que recebe a declaração). De tanto nos falarem em choque fiscal, em diminuição significativa do IRS, numa redução de 3.000 milhões, quando nos explicaram o que pretendiam com isso, muitos de nós, mesmo que com algum cepticismo, acreditámos. A lógica parecia imbatível: a diminuição dos impostos iria colocar mais dinheiro à disposição das famílias e estas, ao gastá-lo, iriam aumentar a faturação das empresas e provocar, com esse aumento generalizado da atividade económica, uma subida tão significativa do PIB que a prazo se compensaria a perda da receita fiscal. Só que, e aqui está a falácia, para se obter esse resultado é necessário baixar os impostos de forma significativa e não apenas, como no caso do IRS, nuns meros 170 milhões de euros. Afinal era mentira, afinal fomos enganados e a culpa ainda por cima é nossa, que percebemos mal.
Tenho que recordar aqui os “ilustres” antecedentes, em sede de “choque fiscal”, de Durão Barroso e de Passos Coelho. Como é sabido, não só nenhum deles cumpriu essa promessa como, no caso de Passos Coelho, a descida de impostos rapidamente se transformou no seu contrário. Faz parte, dirão, a política é mesmo assim. É, lá vem o Direito outra vez, apenas um caso de “dolus bonus”, de “enganei-vos mas foi no bom sentido”. É muita lata, desta vez, para quem tem uma maioria tão pequena.

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António Ferreira

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