Não ponho as mãos no fogo por nenhum político brasileiro, seja Lula, seja Dilma, seja Bolsonaro. O que se foi sabendo deles ao longo dos anos permite todas as desconfianças. O “mensalão”, que servia para comprar votos dos deputados e o vergonhoso processo de destituição de Dilma Roussef mostram como a política pode descer muito baixo. Serão particularidades dos trópicos, mas havia pelo menos a ilusão de que a justiça seria imune a essas particularidades e imporia na sociedade brasileira um contrapeso de racionalidade e de respeito pelas regras. Vimos, no caso do homicídio imputado a Duarte Lima, uma investigação exemplar e coerente. Duarte Lima pode defender-se em Portugal, e pode vir a ser absolvido, mas a justiça brasileira colocou eficientemente as cartas na mesa.
O caso de Lula da Silva é diferente. Como se torna casa vez mais claro, a perseguição que lhe foi feita tinha como objetivo impedi-lo de se voltar a candidatar à presidência e abrir o caminho a Bolsonaro. Para isso foram quebradas algumas regras que deveriam ser universais, mas no Brasil, aparentemente, não são. A primeira tem a ver com o juiz Sérgio Moro, que desempenhou primeiro a função de juiz de instrução, por isso investigador dos crimes imputados a Lula da Silva, e depois os julgou. Em Portugal, isso seria impossível: o juiz de instrução, aquele que acusa ou rejeita a acusação, não pode depois julgar a sua própria acusação (ou, mais propriamente, pronúncia). Esta regra é, ou deveria ser, universal e é uma das garantias do direito a um processo justo e equitativo. De acordo com o art.º 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, «Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida».
O problema está aqui na imparcialidade. O juiz que investigou e apresentou uma acusação irá naturalmente tomar partido pela sua própria acusação, formulada em regra antes do exercício do contraditório pelo acusado. Isto é, terá a sua convicção formada antes ainda do julgamento e é por isso que se torna impossível a garantia de imparcialidade do julgador, daquele que irá decidir pela condenação ou pela absolvição do acusado, quando, na sua cabeça, o tem como culpado desde o momento em que o acusou.
O Supremo Tribunal brasileiro acaba de declarar ilegal a atribuição do poder de julgar a Sérgio Moro, o que está bem nos princípios gerais, mas no caso em concreto se deve tão só a uma questão de competência territorial e não a esses princípios. Mesmo assim, vai no caminho certo.
Quanto aos fundamentos da condenação de Lula, poderiam ser indiscutíveis e basear-se em factos tão claros que a condenação de Lula seria inevitável, por Sérgio Moro ou por outro juiz qualquer. Acontece que não foi assim: os factos que levaram Lula à cadeia foram apurados não por prova direta, mas por mera presunção judicial, por convicção formada indiretamente. Houve testemunhas que disseram algo como “toda a gente diz que o prédio pertence ao Lula” e outras algo como “vimos por aqui o Lula uma ou duas vezes” e daqui (não exagero) Sérgio Moro concluiu que o prédio era do Lula e que esse prédio era pagamento de favores ilícitos – e tudo isso era muito conveniente.
Se avançarmos no tempo, temos o afastamento de Lula numa eleição em que era favorito e a chegada graças a esse afastamento de Bolsonaro ao poder e, logo a seguir, a tomada de posse de Sérgio Moro como ministro da justiça de Bolsonaro. Que tal começarmos nós agora, perante factos tão evidentes, a presumir umas coisas?