Passou um ano

«Ainda hoje tento entender como resistiu o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os dias se pedia mais um esforço, mais umas camas, mais umas horas, mais um esforço, e mais um…»

Há uma sensação de que 2020 teve tanto de intenso, como de vazio. Um ano que não devia contar na nossa vida.

Virologistas, infeciologistas, epidemiologistas, médicos de Saúde Publica, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas, foram chamados a pronunciar-se e todos os dias fomos bombardeados com informação. A doença não era nova, mas adquiria novas incidências. O vírus, esse temível ser, anunciava-se dotado de armas poderosas, capacidade de adaptação e de mutação. A velocidade estonteante com que nos chegava a informação, destruía as verdades e as certezas acabadas de sair das mentes brilhantes na TV. Buscávamos diariamente nos sites das revistas médicas internacionais as novidades, mas também a especulação. Haveria fármacos capazes de deter o vírus ou de minimizar os estragos? A lista incluía os suspeitos do costume, mas com o passar do tempo a dura realidade mostrou que não havia nenhuma substância química com essa capacidade. Jogou-se sem trunfos e lá se foram as poucas cartas do baralho. A aposta seria a vacina, mas até lá a palavra de ordem era confinar e estrangular a economia. Entretanto as unidades hospitalares faziam mover as suas peças de xadrez, num espaço curto e em que se trabalha habitualmente no limite. No caso da Guarda, deslocaram-se serviços inteiros, sacrificou-se a rotina cirúrgica, reduziu-se atividade na consulta, abriu-se uma ala de Urgência dedicada e abriram-se serviços Covid, incluindo de Cuidados Intensivos. Numa semana criou-se uma ala com mais de 100 camas, disponível para receber doentes, completamente equipada, incluindo os sempre escassos meios humanos. Na primeira vaga sentimos que andámos à frente do vírus. O confinamento foi um êxito e a palavra de ordem era “vamos ficar bem”. O que acontecia em Itália, França e Espanha não se podia repetir. Resiliência era a palavra mais ouvida.

Teve custos para além dos financeiros, sem dúvida. Quantos doentes viram atrasados os seus diagnósticos e quantas cirurgias ficaram adiadas? Quando poderíamos regressar à atividade normal e recuperar listas que se acumularam? Mas muito para além disso, como ficaram as emoções e os pequenos (enormes) prazeres? A sensação de um ano que não se viveu. E como fica o filho que não acompanhou o envelhecimento do seu pai ou o avô que não se apercebeu que o neto já corre, para quando fica aquela grande viagem que foi adiada, e aquele novo negócio que mudaria a vida por certo, e o casamento que não aconteceu e a despedida que não se chorou e tanta outra coisa que se protelou.

Tudo sabíamos, tudo tínhamos aprendido. Ou talvez não. Na primeira vaga a mortalidade nacional atribuída ao Covid atingiu os 1.800, e chegamos a março com cerca de nove (9) vezes mais. Em novembro assistiu-se a um crescimento de casos. Adiaram-se decisões para salvar alguma economia. O resultado veio em janeiro e em fevereiro, e mantivemo-nos demasiado tempo, com o maior número de casos por milhão de habitantes. Ainda hoje tento entender como resistiu o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os dias se pedia mais um esforço, mais umas camas, mais umas horas, mais um esforço, e mais um… Os serviços de Medicina Intensiva esticaram mais uma vez, os Serviços de Urgência transbordaram e os internamentos atingiram o limite.

Bendito estado de emergência, menos rigoroso, mas o suficiente para em poucos dias deixarmos o primeiro lugar de novos casos e de mortalidade. Olhando para os gráficos verificamos que a maior redução de casos acompanhou o encerramento dos restaurantes e das escolas. Somos portugueses, mantemos o nosso fado, somos capazes do melhor e do pior.

Na vacina depositamos todas as esperanças e neste momento mais de 446.420 portugueses têm prometida pelo menos uma redução de doença grave em 75 por cento e 293.338 em 95 por cento. Depositamos esperança principalmente na redução de internamentos por doença grave, mas também na redução da transmissão. No momento é isto que importa. A retoma da economia e o regresso à normalidade será lenta. Novo normal, dirão alguns. Nova doença, novas sequelas, novas consequências. Janeiro e fevereiro foram maus de mais, que não se repita.

* Médico e diretor de serviço do Hospital Sousa Martins

Sobre o autor

João Santiago Correia

Leave a Reply