Fazem-me um desafio, e eu encalho logo na primeira frase, debato-me, tento organizar o pensamento, e apercebo-me que estou a escrever sem nada de concreto produzir, quiçá porque no fundo é assim que sinto a cidade. Decido forçar os meus pensamentos e a minha imaginação e vagueio sem parar. Recuo a 1994, e recordo um casal com três filhas e a quarta quase a nascer, acabados de chegar à Guarda. Tinham a impressão de que vinham em busca da terra prometida ou o que se esperava dela. Para trás ficara a cidade grande. Se era Inverno, e se estavam na serra, era normal que ansiassem despertar com um manto branco sobre a cidade, e assim aconteceu. Tudo acontecia como num conto de fadas. Havia construção por todo o lado e novos loteamentos cresciam ao longo da encosta, rasgavam-se ruas novas e avenidas largas, notava-se uma preocupação com o equilíbrio urbanístico e tudo com pensamento ecológico, “a importância do ar da Guarda”. O que mais surpreendia era a forma notável como mantinham vivo o centro da urbe. Criada uma ilusão temos dificuldade de a separar da realidade. Pensando bem, os contos de fadas são isso mesmo e a cidade tinha muito pouco disso. Quando a neve derreteu, caídos na realidade têm uma nova perceção, a cidade parecia inacabada, desorganizada e o centro perdera há muito o bulício e até o polícia sinaleiro já era passado. Ao domingo, como que por arte e magia, as pessoas desapareciam, os cafés e restaurantes encerravam.
Em 1994 a cidade procurava ainda esquecer a perda da fábrica da Renault, substituída por uma outra de cabos, enquanto o parque industrial ficava escondido e de difícil acesso nos vários sentidos que quisermos dar à palavra.
Entretanto, e como por arte e magia, a cidade ganha novas dinâmicas, uma circular externa vem facilitar a ligação aos vários núcleos, embora permaneça inacabada, os equipamentos desportivos e de lazer tornam-se uma realidade. Surge um Teatro Municipal de arquitetura moderna, mas ainda hoje com envolvente inacabada, veem criar novas dinâmicas e interações da população com a arte nas suas várias expressões. Uma Biblioteca Municipal, com tudo o que representa e a forma como contribui para a educação e cultura de um povo, só podia receber o nome de um grande como Eduardo Lourenço. Em pouco tempo a cidade perde a neve e a sua ilusão, mas ganha espaços que a projetam e que a mantêm viva, muito para além das tertúlias de café. Para o bem ou para o mal, deixa-se invadir pelas grandes superfícies comerciais e é para lá que a cidade se desloca. Mas continua a crescer e o projeto Polis traz modernidade com novos espaços, embora aquém das expectativas então apresentadas.
O centro definha, perde gente e agoniza, à semelhança de outras cidades e as soluções tardam.
Falta gente, dirão alguns, é o mal do interior dirão outros. Como se desenvolve uma cidade que perde população, mesmo quando aparentemente tem tudo para dar resposta à premissa da “qualidade de vida”? O que pode oferecer mais que outras já não ofereçam? Necessitaria a Guarda de novas fábricas? Ou será preferível um novo interface de logística? Deveremos passar a uma cidade amiga dos artistas e das artes? Ou uma cidade integralmente digital, o que quer que seja o seu significado presente ou futuro? Intensificar o apoio a um “cluster” de produção de frutos vermelhos, criando novas paisagens? Deve criar projetos de habitação sustentável e amiga do ambiente? Perguntemos aos que nos deixam todos os anos, na sua maioria jovens, cheios de vontade e ambição, o que lhes falta na Guarda. E eles vos dirão que lhes falta quase tudo, sem especificarem a dimensão ou significado do quase. Na realidade, 26 anos volvidos, concluo que a cidade tem quase tudo, mas provavelmente o quase que falta é ainda muito.
Há uma urbe que desperta, mas de forma preguiçosa. Falta talvez mais ambição e mais querer.
Organizar, perceber, produzir e não encalhar, será o desafio.
Vereadora do Partido Socialista na Câmara da Guarda