“Estrela Polar”: a luz redentora que rompe as noites brancas da Guarda

Escrito por Thierry Santos

“Ao ler este livro, pode o leitor interrogar-se sobre os encantos que uma cidade do interior deve ter para que o habitante, ou visitante, venha a tomar parte da sua comunidade emocional. Sem esse sentimento de apego, o cidadão atual não consegue sintonizar-se com o espírito do lugar. Sem literatura, a Guarda seria apenas a Guarda.”

Vindo a lume em 1962, logo a seguir ao premiado romance “Aparição”, de 1959, e sendo, na indagação filosófica, uma espécie de continuidade deste, “Estrela Polar” surge como um dos romances mais originais de Vergílio Ferreira, por fazer oscilar na narração o real e o irreal e questionar o género romanesco no próprio discurso da obra.
Situável nos anos 50 do século passado, a trama desenrola-se, quase toda, numa pequena cidade serrana no interior do país. Adalberto Nogueira, o narrador-protagonista, está na prisão por ter matado Aida, a mulher que tentou amar e deixou de querer. Não por acaso o “excipit” há de reenviar para o eterno retorno, sublinhando assim o sentimento trágico da vida.
A narrativa, segmentada em 31 capítulos, flui ao ritmo de retrospeções desordenadas, raciocínios suspensos e de emoções provocadas pelo esforço que Adalberto faz para se contar. Projetando uma cidade mergulhada em atmosfera ambígua e lúgubre, como num filme «noir», as cenas evocadas representam as tentativas desse homem comum para se compreender a si mesmo e ordenar o caos existencial. Entre a escassez de satisfação e o excesso de frustração, por muito que se esforce, não consegue ser para si nem para os outros.
Neste romance do absurdo, em linha com a proposta existencialista, as paisagens descritas são como um espelho do sentir do sujeito-narrador. Não admira que a cidadezinha seja habitada por figuras perturbadoras. Há as irmãs hipoteticamente gémeas, Aida e Alda, tão desejáveis como descartáveis aos olhos de Adalberto, que o confundem. São filhas do sisudo Sr. Sousa que fala pela garganta através de um aparelho, e da D. Aura, uma encantadora de cães vadios, que, além de usar uma cabeleira postiça, ri como uma idosa demente. Emílio, o médico, terá tido um namoro discreto com Alda (ou terá sido com Aida?). O Jeremias, dono de uma estalagem, é um brutamontes que bate na mulher, porque sofre de solidão. O tresloucado Garcia, magro como um tísico, com dentes a mais na boca, é pintor e tem como amante Irene, uma invisual que gosta de cantar em casa. A criança de poucos meses, filho de Adalberto e Aida/Alda, morre por asfixia ao ficar pendurado nas grades da cama. Garcia instigará Adalberto a livrar-se de Alda/Aida.
Na verdade, o espaço urbano que serve de palco ao romance é a Guarda (embora aí denominada Penalva), que o autor conhece bem por nela ter residido nos seus tempos de estudante. Nesse cenário, configura a realidade num exercício de distorção, com propositados anatopismos, para criar esse ambiente fantasmagórico que traduz toda a angústia de Adalberto. O certo é que a topografia e a toponímia permitem reconstruir num mapa a forma que a Guarda tinha na época: praça, Sé, Castelo, mata, estrada do sanatório (Alves Roçadas), miradouro (com o monumento do Dr. Lopo de Carvalho), Sanatório, jardim (José de Lemos), o quartel (convento de S. Francisco), Largo da Prisão (nas traseiras do atual Museu), Rua da Fonte (31 de janeiro), Rua da Misericórdia, Rua do Marquês (de Pombal), Rua da Misericórdia, Rua da Torre e um «largo de velhos castanheiros» no extremo da mata, onde «acampam os ciganos pela feira de Junho».
Incapaz de equacionar na sua vida os conceitos de verdade humana, fraternidade e amor, Adalberto descreve uma cidade que faz dos seus habitantes espectros. Exceto em breves cenas, o inverno nevoso parece aí não ter fim. Até as cenas alusivas ao modo como encara a vida política de então são construídas com uma pitada de humor «nonsense». É, todavia, através da palavra catártica que o sujeito-narrador redime a sua existência desajustada, porque põe a nu os paradoxos e as condições limitadoras do Homem e da Sociedade.
Ao ler este livro, pode o leitor interrogar-se sobre os encantos que uma cidade do interior deve ter para que o habitante, ou visitante, venha a tomar parte da sua comunidade emocional. Sem esse sentimento de apego, o cidadão atual não consegue sintonizar-se com o espírito do lugar. Sem literatura, a Guarda seria apenas a Guarda.

Sobre o autor

Thierry Santos

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