Entregues à bicharada

Escrito por Fidélia Pissarra

“À degradação e desertificação do antigo centro da cidade, o que não falta é quem queira responder com pontos de atração constantemente montados nos arrabaldes da cidade.”

Custodiae é uma pequena cidade onde, para enfrentar o longo frio do inverno e o calor intenso dos verões, os habitantes dão em caminhar arrodilhados, dormentes, sobre a própria barriga. O que os deforma e apequena. Situada junto à fronteira, na ponta de uma serra, vê-se rachada em duas: a cidade velha, com casas agachadas, esborratadas pelas sombras, e a cidade menos antiga, alongada pela paisagem.
Há quem se lembre de, nas noites de inverno, ver as duas iluminadas pela luz florescente despejada para as ruas através das montras das lojas. Mas, devido à distância desses tempos, tais memórias têm esmaecido, a olhos vistos, e, através dos vidros sujos e cheios de teias de aranha das portas e janelas, em boa verdade, as ruas já não conseguem reconhecer ninguém. Não admira, por isso, a falta de pessoas – e da noção das poucas pessoas que por ali ainda se vão deixando ficar –dispostas a propor soluções, com pés e cabeça, para estes desencontros entre terra e gente. À falta de alguém com visão e estratégia para redefinir a cidade, resta aos custodiae aproveitar qualquer bicho careto, minimamente enfarpelado, que por ali assome a propor qualquer coisinha.
Acontece que nem os caretos, nem os bichos, como bem se sabe, percebem peva daquilo. De gerir uma cidade para os cidadãos e, de caminho, urbanizar os rurais, sem ruralizar os urbanos. O que é bem evidente nas propostas, aleatórias, pouco casuísticas e impreparadas de bichos e caretos. À degradação e desertificação do antigo centro da cidade, o que não falta é quem queira responder com pontos de atração constantemente montados nos arrabaldes da cidade. Perante problemas de ligação entre as difíceis artérias, alvitram soluções que, quando não abafam, são fatais. Por inadequação de uso, deixam meio mercado vazio e alugam tendas para, por dois dias, albergar os compradores e vendedores que, alegadamente, não cabem no mercado construído para, precisamente os albergar. Alegadamente, porque, à falta de artesãos, doceiros, presunteiros, queijeiros, oleiros, cesteiros, tecelões e latoeiros, sempre parece que pode albergar qualquer coisa. Coisa atual, de nome pomposo e, por isso, impossível de meter numa tenda alugada por dois dias: um Centro de Startups. Não que um desses centros não ficasse melhor noutro sítio qualquer – o que no centro da cidade não faltam são estruturas devolutas, incluindo municipais, por todos os cantos – não, vai ficar ali.
Cá para mim, esse tal centro apenas vai fazer o papel dos queijos, por cima dos queijos, e justificar a necessidade anual de montar a barraca ao lado do mercado para fazer a feira que, anualmente, parece chegar para alegrar a vida dos custodiae. Melhor bicho careto do que estes, só um que se lembre de propor um Pavilhão onde, pelo menos uma vez por ano, caibam todos os fãs de um qualquer cantor pimba. Aí sim, entre a exposição de mamarrachos nas rotundas, passadiços, ecovia, locomotiva, centro de Startups e Pavilhão não sei-das-quantas para não sei o quê, a pequena cidade ainda vai ficar grande. Se vai ser grande coisa é que já poucos acreditarão. Caso para dizer, os bichos caretos não percebem nada sobre como gerir os infelizes custodiae, mas lá que têm a inata propensão para desaproveitar o que de bom e diferenciador estes possuem e escangalhar, ainda mais, o que nunca teve jeito, têm.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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