Elisa

Escrito por Diogo Cabrita

“A indignidade com que transferimos milhares de milhões para desperdício, vaidades, obras faraónicas, decisões polémicas demasiado dispendiosas, por vez de beneficiar os salários e as reformas afeta-me, aleija-me e isso faz-me sentir um homem bom.”

Caminha carregada pelo supermercado. Tem mais idade que a conta que pagou. Não poderia pagar muito porque recebe uma reforma pequena. Gere como ninguém aqueles 400 euros que lhe pingam das décadas no IPO. Trabalhou desde menina, descontou desde pequena e o corpo estragou-se pelos sessenta e tantos. Era cedo para a reforma, mas as dores mandaram mais e saiu. Reforma penalizada, reforma mirrada. Gere melhor aqueles euros que o Jardim Gonçalves os milhões que consegue por ano. Sobram-lhe euros para ajudar a filha que o 2020 atirou para o desemprego lá no Algarve. Não pode comprar o passe dos transportes porque o dinheiro não estica. Não pode andar de táxi por maioria de razão. Carrega os sacos e empurra o carrinho. Aquela pequena força não desarma porque há uma filha para carregar. Já não devia ser assim, mas as circunstâncias atraiçoaram os sonhos da miúda. Mãe não verga enquanto a filha precisa. A Elisa é portuguesa, educada, viúva de um homem bom e visionário. Sempre foram cumpridores e comedidos. Sem extravagâncias, sem sonhos maiores que o limite da conta. Apostaram em não ter dívidas, em guardar seu recanto que conserva limpo e seguro, abrigo dos desaires dos filhos, porto de chegada para netos e infortúnios. Elisa ficou viúva e agora é mãe e avó e gere que dilata aquele orçamento. A Elisa estava a caminhar suando, a carregar com dificuldade e decidi levá-la. Fui deixá-la a casa, contou-me detalhes da vida, sempre serena, sempre na magia de uma sabedoria sem rancor e sem desespero. Tristeza sim. Cerca apertada financeira, sim. Para mim é mais uma heroica portuguesa que devia ser condecorada e dar aulas de gestão financeira. A indignidade com que transferimos milhares de milhões para desperdício, vaidades, obras faraónicas, decisões polémicas demasiado dispendiosas, por vez de beneficiar os salários e as reformas afeta-me, aleija-me e isso faz-me sentir um homem bom.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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