A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Um corpo é invadido e no peito um leve movimento provoca a explosão e o espanto, rasto dos astros latentes da noite.”

Quando se acorda a luz atravessa a córnea e dirige-se, coada e preguiçosa, para a retina. Uma fragilidade oscila na linguagem que se quer inteligível. Dilatam-se as superfícies e abreviam-se derrocadas. Um corpo é invadido e no peito um leve movimento provoca a explosão e o espanto, rasto dos astros latentes da noite. Numa espécie de vôo táctil as mãos pousam no rosto.
Um filme é gravado em posição invertida. Como o tempo se há-de inverter um dia nos ponteiros de um relógio. Desconhecemos o real peso do olho ou o volume que ocupa. Sabemos do magnífico nome do rio que se percebe no cristalino aquoso ou do brilho do candeeiro ao final da tarde. A tarde insiste em ascender abençoada em contra-luz. Se elevarmos o olhar teremos a semente da transparência. Da paz também.
Quem passa atrás do relógio é sempre quem se desloca na retina? E os carros e as luzes? E as estátuas paradas? Sozinhas respiram a tarde. Ninguém sabe disso, mas são elas que amaciam o tempo. Alguns gradeamentos surgem como lanças imprevisíveis. Ferem ou serenam. As espadas também podem ser flores. Ancestrais flores-de-lis incrustadas em mantos de veludo azul. A solidão apaga pequenos vulcões imaginados. Abrasa a invisibilidade das fissuras.
Passos movimentam-se anónimos e indiferentes aproximando-se do cais. Há sempre um cais no tempo. É onde paramos na procura das raízes. Aí nos aguardam. Às vezes também existe um cais na cidade. É uma luz que brilha na música. A cidade traz com ela revelações de sons repetitivos. Como os passos – ritmos vagos na fugacidade das palavras. Em casa deixamos cair os sons e acendemos o fogo. O relógio é um olho ou o olho um relógio onde se clareiam combustões.
Somos a herança do Paleolítico. Tememos ataques de animais e deambulamos no desassossego pela procura de alimento. Passam por nós flores e frutos brilhantes. Calcamos raízes e ovos que se afundam aos nossos pés. Corremos o dia inteiro sem nada saber do regresso. De tumultos são ainda os nossos olhos. Tribais remexemos as pedras numa dança a transbordar de visões. Que sabemos ainda dos abismos e dos halos sombrios que nos esperam?
O olho, esse, distinguirá dez milhões de cores até a noite cair sobre as pálpebras e os cílios se encontrarem. Não desistiremos da procura de sinais nem deixaremos de nos erguer na busca da humildade inicial.
Não temeremos enlouquecer quando alguém perguntar – que horas são no teu relógio? (Que é como quem questiona – qual a nitidez do teu olhar?)

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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