Eduardo Lourenço e a Guarda: O regresso do navegador por ruas estrangeiras

Escrito por Virgílio Bento

“Mas homenagear não é um simples regresso ao passado. Na linguagem mitológica, comemorar um acontecimento significa torná-lo presente, revivê-lo.”

Este pequeno texto pretende ser uma homenagem ao cidadão de S. Pedro de Rio Seco, da Guarda e do mundo. Mas é também um momento para recordar as vivências, os afetos, os risos, as marcas que deixou na sua cidade, o seu Centro de Estudos Ibéricos e a sua Biblioteca Municipal.
Homenagear significa recordar o passado, as experiências vividas, as tantas histórias que percorreram as nossas vidas. Afirmava Nietzsche que o que distingue o homem do animal não é a sua racionalidade, mas sim a sua memória. A superioridade do homem relativamente ao animal reside na capacidade de conservar na sua mente as experiências agradáveis e desagradáveis, os seus afetos, as imagens dos espaços e das pessoas.
Mas homenagear não é um simples regresso ao passado. Na linguagem mitológica, comemorar um acontecimento significa torná-lo presente, revivê-lo.
Também o pensador que estamos a homenagear nos ajuda a olhar para o passado não apenas como passado, mas como algo que se eternizou, que «o nosso olhar sobre o passado não pode ser como o de Loth que convertia os familiares em estátuas de sal. Temos de saber e sentir que a viagem no nosso passado apenas começou. E que o futuro dos homens é um eterno presente».
É com o passado que imaginamos o futuro como o sol que esperamos para ver o que nos cerca, é o tempo unicamente feito de esperança, sonho e utopia, donde tudo e em função do qual caminhamos para alguma «espécie de porto».
Iniciaram-se no passado dia 23 de maio as comemorações do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, na sua aldeia natal, tão pobre que «até o rio é seco» e na sua capital, como se referia afetuosamente à Guarda, organizadas pelo Centro de Estudos Ibéricos, Câmara Municipal de Guarda e Câmara Municipal de Almeida. É neste pequeno mundo que se encontram as origens deste navegador por ruas estrangeiras. Numa lúcida reflexão identitária refere que «viver com tanta paixão o elo que os liga à pátria – ou melhor, à terra, no sentido arcaico do termo – do que os portugueses, é difícil, porque essa paixão é o nome mesmo da sua identidade».
No começo da sua errância, Eduardo Lourenço sai do seu mundo aldeão e vem para a sua capital de distrito que «foi a cidade, como Roma era a Urbe para o cidadão romano». A Guarda, a Penalva evocada por Vergílio Ferreira na sua “Estrela Polar”, causou ao pensador maior surpresa que qualquer outra cidade por onde iria passar. Foi nesta cidade que se sentiu, pela primeira vez, viver em sociedade, espaço que promoveu o encontro com os outros, apesar de ser uma realidade espectral, «onde ninguém nos conhece, somos espectros de nós mesmos».
Por ocasião das comemorações do Oitavo Centenário da Guarda, no dia 27 de novembro de 1999, Eduardo Lourenço foi convidado para refletir sobre o nosso passado e nos ajudar a projetar o futuro. No elogio à Guarda, a que deu o título “Oito Séculos de Altiva Solidão”, refletiu sobre a interioridade da Guarda que considera ser «mais filha da história do que da geografia», uma vez que a Beira só é interior depois que «Portugal se define por um mar que hoje não fica longe para ninguém, mas então era como um outro planeta». À Guarda, não interior mas coração de Portugal, o pensador lançou o repto da criação, na senda de Oliveira Martins, de qualquer coisa como um “Instituto da Civilização Ibérica”, que tivesse por função pensar a jangada de pedra, utilizando a metáfora de José Saramago, que dos Pirenéus se desloca para o Atlântico, para que nós soubéssemos quem somos e onde estamos.
A este desafio a Câmara Municipal não podia ficar indiferente e, juntamente com duas das mais antigas universidades da Europa, constituíram o Centro de Estudos Ibéricos. Mais tarde irá reconhecer o insólito deste acontecimento, pois, talvez pela primeira vez, um pensamento, uma ideia sua se tornava realidade. Comentava muitas vezes, quando se referia ao CEI, que dizia muitas coisas, mas ninguém lhe ligava. Logo na sua Capital o haviam de levar a sério. Tal como a criatura está ligada ao criador, também Eduardo Lourenço estará indelevelmente ligado ao CEI. Talvez por isso, este ilustre cidadão do mundo se revê nas palavras escritas no início do “Labirinto da Saudade”, quando afirma:
«Não queremos deixar perdido aquilo que nos foi valioso. É uma espécie de contínua ressurreição em vida». Mas foi o Centro de Estudos Ibéricos que fez o pensador regressar aos espaços míticos do seu próprio imaginário. Não tivesse existido o repto, e talvez ele tardasse a voltar. Sempre que regressava à sua aldeia e à sua capital, revisitava as paisagens, os sons e os rumores invisíveis das falas da lembrança, onde o passado se torna presente. Aí ele redescobria o seu pequeno grande mundo e cumpria a ansiada peregrinação silenciosa para, como Machado de Assis, atar as duas pontas da vida – a do nascimento e a do crepúsculo – num só nó.
No dia 18 de maio de 2001, por ocasião do acto de Escritura Pública do Centro de Estudos Ibéricos, a então Presidente da Câmara pediu-lhe este «especial favor”, o de aceitar que o seu nome fosse dado à Biblioteca Municipal. Foi por se reconhecer «atento aos outros e distraído de mim» que Eduardo Lourenço acedeu ao convite («digo que sim, porque tenho vergonha de negar»), embora se confessasse «surpreendido, quase aterrado» ou «mesmo encostado a uma parede para ser fuzilado com uma honraria». Com a humildade própria dos grandes pensadores, Eduardo Lourenço considera este gesto «injustificado, inadequado, não me reconheço nenhum valor especial para que uma honra dessa natureza me tenha sido concedida».
Mas o seu nome ficará ligado à Biblioteca também por outras razões. Será a sua “oikos”, a última viagem dos seus livros, onde, ao serem disponibilizados na nova biblioteca, ganharão «uma outra vida, uma memória futura».
Foi a sua esposa Annie, aquando da doença do seu marido em abril de 2002, que me confidenciou, durante a viagem do Aeroporto Humberto Delgado para o Hospital da Universidade de Coimbra, que «o Eduardo queria doar os seus livros à Biblioteca da Guarda». Esta inconfidência foi mais tarde confirmada pelo próprio Eduardo Lourenço, insistindo que tínhamos que ir a Vence buscar os livros. Em abril de 2007, deu entrada na Biblioteca Municipal o acervo de cerca de 3.000 obras do seu espólio. Foi no dia 23 de maio de 2008, por ocasião do seu octogésimo quinto aniversário, que é formalizada a doação do espólio, comprometendo-se a Câmara a cuidar desse espólio e instalar o Fundo Documental Eduardo Lourenço.
Esta doação do espólio, considera o pensador como leitor compulsivo, é o cúmulo do narcisismo, pois «estou a oferecer os livros dos meus amores, dos meus estudos, das minhas paixões». Mais do que oferecer livros, «estou dizendo adeus a mim mesmo e preparando o mais confortável dos túmulos que é o de saber que assim continuarei entre gente que teve alguma consideração por aquilo que eu sou, e que escrevi».
Os livros assumem assim uma dimensão que transcende a realidade do dito e do escrito, transfigurando palavra, e sendo a expressão da melancolia e da felicidade, da tristeza e da alegria. O leitor, este «anjo expulso do verde paraíso dos amores infantis», terá a tarefa de desocultar o invisível da palavra, ler o não escrito, dizer o não dito. Assim, todos nos sentiremos, na opinião de Jorge Luís Borges, «proprietários de um tesouro intacto e secreto».

Guarda, 28 de junho de 2023

Sobre o autor

Virgílio Bento

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