Duplicidades

“Obviamente, o leitor poderá observar e até indignar-se com a contradição entre a renovação na vida pessoal e a continuidade na vida de cronista. “

No início desta semana, no dia em que esta crónica se escreve, recordaram-se duas efemérides trágicas. O 11 de Setembro nova-iorquino e o 11 de Setembro chileno. O atentado contra o World Trade Center e o golpe de estado do general Pinochet.
A propósito de datas com acontecimentos duplos, tenho dois amigos nascidos a 10 de Setembro, com 16 anos de afastamento entre ambos. Os seus aniversários acabam por ser um prenúncio de desgraças, sejam elas em forma de tragédia, na geopolítica mundial, ou de comédia, na sua vida privada, ao tornarem-se meus amigos.
Aqueles dois acontecimentos ocorridos a 11 de Setembro deixariam marcas profundamente pesarosas na Humanidade. Nos EUA, a morte de milhares de pessoas e o envolvimento em conflitos militares que durariam décadas. No Chile, uma ditadura sanguinária e os romances da filha de Salvador Allende.
Curioso, ou estranho, para os teóricos da conspiração, é o Chile não ser capaz de escolher datas exclusivas para eventos importantes. A ditadura de Pinochet chegou ao fim a 11 de Março de 1990, exactamente a mesma data em que a Lituânia se declarou independente da ocupação soviética. Há países que não nasceram para a singularidade.
Setembro é, para mim, o verdadeiro Ano Novo. Janeiro não traz nada particularmente diferente à minha vida, excepto ter de me lembrar durante várias semanas que os últimos algarismos referentes ao ano civil aumentaram. Setembro, pelo contrário, é o reinício do ciclo anual de novas turmas, novas disciplinas, e o renovado espanto pelo distanciamento cultural entre mim e os meus alunos: não só nunca leram Turguéniev, como já não assistem às galas do “Big Brother”.
Obviamente, o leitor poderá observar e até indignar-se com a contradição entre a renovação na vida pessoal e a continuidade na vida de cronista. Poderá mesmo perguntar-se, “se vive esse recomeço na universidade, por que é que continua a escrever as mesmas porcarias aqui no jornal, ano após ano?” Pode perguntar e pode indignar-se, é verdade, até porque esta crónica já leva mais anos do que aqueles em que Pinochet foi ditador no Chile e praticamente o mesmo tempo que o exército americano se manteve em Kabul. No fundo, é essa presença indesejada por muita gente que une a ditadura chilena, a invasão do Afeganistão e o “Observatório de Ornitorrincos”.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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