Até meados do séc. XX os rios e ribeiros da cintura da Serra da Estrela abundavam de pisões e teares, disseminados pelas aldeias, quase que escondidos no alcantilado do terreno. A energia produzida pela força da água dava vida e energia a muitas famílias, mas sempre de forma complementar ao trabalho agrícola. Com o recurso a novas tecnologias algumas dessas pequenas “oficinas” deram lugar a fábricas, algumas delas marcantes na paisagem socioeconómica da região.
É neste contexto que a freguesia de Trinta, Guarda, desde sempre inserida num meio profundamente agrícola, passou, a partir de meados do século XIX, a ser uma terra industrial.
A principal razão era o rio Mondego que bordeja aquelas terras e propiciava com a sua água a força motriz necessária ao funcionamento dos pisões e fábricas. Mas é preciso mais que isso, é necessário que alguém saiba aproveitar essas potencialidades. Quem teria sido esse “alguém”? Quando é que tudo teria começado? Quando é que teria nascido a primeira fábrica, digna desse nome?
Na semana passada fechou a última das fábricas ainda a laborar nos Trinta, o que é um pretexto para relembrar a primeira, e a família que lhe deu vida.
A família Corsino
A família Corsino há séculos que se encontra radicada na freguesia dos Trinta. Por ali fazia os seus negócios, amanhava as terras e tinha dois pisões. Mas nos começos do séc. XIX algo estava a mudar e nem a família, nem a freguesia, voltarão a ser as mesmas.
Tudo começou com João da Fonseca Corsino. Filho de André Lopes Corsino, nasceu nos Trinta em 1752 e aí casou com Maria Robala. Dos vários filhos que o casal teve destacaram-se João, António e André. João nasceu em 1797 e nunca casou. Seguiu as pisadas do pai, dedicou-se ao fabrico e comercialização de lã.
António nasceu em 1800 e seguiu a vida eclesiástica. Veio a ser pároco dos Trinta durante 33 anos, entre 1827 e 1860. André nasceu em 1813. Como reflexo do sucesso económico que a família já então tinha, foi estudar para Coimbra, onde se vem a formar na Faculdade de Direito.
Empreendedor e ambicioso, João decide ir mais longe que as rotinas fabris do seu tempo. Para isso convence os irmãos a fazer um melhor aproveitamento das águas do rio e a adquirir máquinas que lhe permitissem produzir mais, mais barato e de melhor qualidade. Foi assim que nasceu a João Corsino e Irmãos. Junto ao Mondego, instalam uma fábrica, o Engenho Grande ou Fábrica de Marrocos, que será a primeira fábrica de lanifícios da região.
Entretanto, André casou, e rico, com uma senhora da alta sociedade, Dona Maria Ermelinda Caldeira de Albuquerque Vilhena, o que virá a alterar o estatuto da família, sendo feito comendador.
Em 1851, com a fábrica em plena laboração, participa na Exposição Universal de Londres, apresentando cobertores de papa.
Em 1863, constituem a firma Corsino e Irmãos. Em 1864 morre João da Fonseca Corsino, tinha 67 anos de idade.
Em 1865 participa na Exposição Internacional do Porto, com saragoças entrançadas e cobertores de várias cores, mas ainda nesse ano morre o padre António da Fonseca Robalo e é constituída uma outra empresa, a Sociedade Fabril.
Em 1868, já só com André à frente da empresa, em sociedade com José da Fonseca Nunes, da freguesia dos Meios, é fundada a Corsino e Companhia, destinada ao fabrico de saragoças, tecidos e lãs.
O núcleo de fundadores e dinamizadores está a chegar ao fim, pois em 1877 morre o dr. André Corsino, com 64 anos, deixando cinco filhos menores.
A fábrica é então arrendada à firma Jorge e Tavares, que terá arrendado também o Engenho do Velaínho.
Dona Ermelinda, viúva do Dr. André, vai viver para Figueiró da Serra e, em 1888, põe a fábrica à venda.
António Corsino e a Fábrica de Marrocos
O filho mais velho do dr. André é António, nascido nos Trinta em 1868. Matricula-se na Faculdade de Matemática e vai ser um dos elementos fundadores da Tuna Académica de Coimbra.
Em 1903, casou com uma viúva riquíssima, Dona Maria Margarida de Azevedo Coelho Bacelar Quaresma de Barros Castelo Branco, sendo o finíssimo copo de água servido pela famosa Casa Ferrari. A lua-de-mel foi passada, já na altura, na Riviera francesa, no meio do luxo e ostentação.
António não só passou a ter uma situação financeira mais desafogada, como reforçou a sua posição social na região e no país.
Na Guarda, o casal viveu numa casa arrendada na rua Dr. Lopo de Carvalho, mas era cada vez mais na sua bela casa dos Trinta, ricamente decorada, que progressivamente iam passando o tempo e gerindo os seus negócios, quer das fábricas, quer das suas vastas e dispersas propriedades agrícolas, sobretudo no vale do Mondego e em Portalegre.
Na Guarda foi Recebedor da Comarca e Administrador do Concelho, o que lhe trará alguns dissabores. Desiludido com a política e com as traições de alguns seus “amigos”, dedica-se cada vez mais à atividade industrial e à vida nos Trinta, onde será sócio de várias empresas ligadas ao fabrico e comercialização de lanifícios.
Faleceu no dia 8 de setembro de 1934, em Lisboa. Os Trinta, mas principalmente os pobres, perderam um dos seus maiores amigos e benfeitores.
O Engenho Grande: Fulgor e tragédia
Das várias fábricas de que Corsino Caldeira foi proprietário destacava-se, pelas suas dimensões e pela qualidade do seu equipamento, a Fábrica de Marrocos. Conhecida nas redondezas por Engenho Grande, era o orgulho dos seus proprietários.
Mas a tragédia estava à espreita! Em setembro de 1902, pelas 9 horas da noite, deflagrou um terrível incêndio, como não há memória por aquelas terras. Foi um espetáculo pavoroso, a que a noite punha o tom de um terror ainda maior. O fogo consumiu praticamente tudo e só terminou pela manhã quando já nada mais restava. As causas do incêndio nunca chegaram a ser esclarecidas, mas teria tido origem num candeeiro de petróleo deixado aceso no escritório do feitor.
Os prejuízos foram enormes, superiores a nove contos de réis, e só estavam seguros em três contos. É que, António Corsino, pretendia transformar a fábrica, já então de grandes dimensões, mas só de cardar e fiar, numa outra destinada também ao fabrico de tecidos, e estava só à espera de receber a totalidade das máquinas para então proceder à atualização do seguro.
António Corsino sofreu um rude golpe financeiro, ponderou fechar a fábrica para sempre, procurou sócios capitalistas por todo o país, mas soube ultrapassar as dificuldades.
Em 1908, funda a Corsino, Tavares & Companhia, a fábrica renasce, mais moderna e adequada ao século XX. Com a morte de António Corsino, a empresa passa para o seu filho, António de Azevedo Bacelar Corsino Caldeira, como António Corsino Caldeira, Scrs.
Até 1945 é explorada por Júlio Daniel & Filho, e de 1945 a 1957 por uma sociedade entre Manuel Luís e António Corsino (filho).
Em 1957 Manuel Luís compra a cota de António Corsino e passou a ser Fábrica de Marrocos Lda. Será por pouco tempo, pois em 1963 vendeu o equipamento e arrendou as instalações a Manuel da Cunha Sampaio.
O que resta da fábrica é propriedade dos herdeiros de Manuel Luís.
*Investigador da história local e regional