Os acontecimentos recentes mostram que o centro político deixou praticamente de existir. A discussão sobre as razões das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente radicalizou-se a níveis antes impensáveis, tal como aconteceu com as eleições presidenciais norte-americanas.
No caso da Ucrânia, esta ora é vista como nazi, ora como um país democrático que se limita a defender o seu território face a uma Rússia que é, por sua vez, ora fascista, ora um respeitável opositor ao “unilateralismo” Ocidental – motivo pelo qual parece, cada vez mais, cair nas graças da esquerda.
No Médio Oriente, parte da esquerda preferiu silenciar os eventos de 7 de outubro de 2023 ou, pior ainda, classificá-los como simples atos de resistência. Quando confrontados com o massacre de crianças e jovens, há quem responda que não houve mortes de bebés, encerrando assim a questão sobre massacres, ou, então, invocam o eterno “e então o massacre de… (preencher conforme necessário)”, ignorando, sobre reféns, que os milhares de prisioneiros palestinianos ao menos foram detidos com base em decisões judiciais. Quanto à reação israelita, que embora previsível ultrapassou o necessário, a direita ou nega as suas consequências ou as desvaloriza, afirmando que «os dados sobre os mortos em Gaza são oriundos do Hamas e, portanto, não são credíveis». Quando o Irão interveio, através do Hezbollah, do Hamas ou diretamente, assistimos mais uma vez a um espetáculo de dualidade de critérios: há algumas semanas, o Irão atacou Israel com centenas de mísseis balísticos; quando Israel retaliou, no passado fim-de-semana, o Irão apelou à intervenção do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Durante o último ano, o Hezbollah foi lançando mísseis, drones e rockets contra Israel, sob o silêncio dos opositores deste. Quando os israelitas retaliaram com uma invasão limitada ao Líbano, a eliminação de altos responsáveis e a destruição de infraestruturas do Hezbollah, as críticas foram generalizadas. É como se Israel, mesmo tendo o direito de se defender, tivesse de o fazer timidamente.
Nos Estados Unidos, a escolha parece limitar-se a uma mulher que a direita vê como uma perigosa socialista e um homem que a esquerda já qualifica de fascista. A verdade é que, se Trump exibe traços e ideias típicas de quem aprecia regimes autoritários e repressivos (ainda que insuficientes para o definir como fascista), Kamala Harris pouco tem de social-democrata e ainda menos de socialista. Em Portugal, Trump estaria ao lado ou mesmo à direita de André Ventura, enquanto Kamala Harris se situaria entre o PSD e a Iniciativa Liberal. Mais inquietantes do que os rótulos são, no entanto, as razões das preferências dos eleitores. Os apoiantes de Trump, que jamais perdoariam um historial de vigarice e adultério a um candidato republicano comum, perdoam-lhe tudo, como se ele fosse a salvação contra ameaças que só existem em teorias da conspiração. Tomam como verdadeiros todos os disparates em que ele acredita, sem um mínimo de reflexão ou espírito crítico. Durante a pandemia, chegou a sugerir que a Covid podia ser curada com a ingestão de lixívia e desinfetantes – vangloriando-se da sua “descoberta” como se fosse digna do Prémio Nobel da Medicina. Um político que diz algo assim desqualifica-se para qualquer cargo que exija o mínimo de inteligência ou cultura geral. Como qualificar quem o admira e ainda o escolhe para presidente?
Nestes temas, como em tantos outros que correm mal, o que falta é bom-senso. Votar num corrupto que recomenda beber lixívia, que agride sexualmente mulheres, que engana parceiros de negócios e mente com uma frequência alarmante desqualifica o eleitor. Mais valia votarem num orangotango: também é cor de laranja, mas é inofensivo.
Dualidade de critérios e falta de bom senso
“Os acontecimentos recentes mostram que o centro político deixou praticamente de existir. A discussão sobre as razões das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente radicalizou-se a níveis antes impensáveis, tal como aconteceu com as eleições presidenciais norte-americanas.”