Quem já esqueceu os condicionalismos e constrangimentos impostos aos médicos e ao restante pessoal que trabalha no Serviço Nacional de Saúde? A zelosa e cumpridora gestão hospitalar resolveu impor, quiçá para salvar o país, limitações no que dizia respeito a vários gastos, cumprindo diretrizes governamentais. A mais caricata medida adotada pelos obedientes gestores teve que ver com o consumo de papel. Não, não falo de papel em sentido figurado, falo no sentido real do termo. E já nem falo de medicamentos e de outros produtos necessários ao funcionamento normal do Serviço Nacional de Saúde. Lembrar que muitos médicos foram “chamados” pelos diretores de serviço por estarem a usar demasiado papel nas prescrições aos doentes. Com a informação que o médico em questão ou mudava de atitude, ou sofreria represálias graves. Era preciso poupar nos consumíveis, esquecendo-se os ditos “zeladores da coisa pública” que a grande maioria dos utentes do Serviço Nacional de Saúde são cidadãos envelhecidos com pouca ou nenhuma literacia para receberem e interpretarem a mensagem do médico e muito menos a posologia não especificada na receita eletrónica, ficando os doentes à mercê de boas ou más farmácias. Mas os médicos, conhecendo bem o meio em que se inserem, enfrentavam as listas de advertência, publicitadas por todo o hospital, aí já sem os tais constrangimentos de gastos, uma listagem colorida com as cores do semáforo conforme o bom comportamento na impressão de receituário.
Como era natural, os médicos sorriam perante tamanha imbecilidade. A teimosia de muitos em continuar a usar o papel para melhorar a defesa do doente levou a que tal medida caísse no esquecimento. Não passavam de medidas mascaradas de boas intenções, com promessas de ganhos em qualidade e saúde. Claro que não se procuraram efetivas e reais soluções para a melhoria dos serviços. Apenas e tão-só medidas de cosmética para enganar o cidadão comum. Tudo isto não passou de uma patética tentativa de introdução de métodos de gestão das fábricas de automóveis nos hospitais para vigiar e para controlar os atos médicos, retirando capacidade de autonomia aos clínicos.
Em menos tempo do que demora um fósforo a apagar-se percebeu-se que os gestores hospitalares continuam muito preocupados em vender a imagem de austeridade como forma de iludir os cidadãos acerca da real situação do Serviço Nacional de Saúde. De facto, fazem crer que falta dinheiro para papel, mas publicitam aumentos de investimento enquanto pactuam com ganhos astronómicos de certos tarefeiros, ganhos da ordem das centenas de milhares de euros anuais, muito à custa de esquemas e da chico-espertice tão próprias do sangue lusitano. Face ao que se passa com estes tarefeiros, como fica a autoestima e o sentido profissional dos restantes médicos? É que ao lado desses tarefeiros milionários trabalham os profissionais mais antigos que ainda resistem nas carreiras do Serviço Nacional de Saúde, os tais que recebem muito menos do que eles. São dois mundos que funcionam como a água e o azeite, com a desmotivação inerente, a incapacidade de se trabalhar em equipa, a desorganização, o antagonismo até, e os resultados que estão à vista em muitos hospitais
Diz-se que nunca houve tanto investimento na saúde, mas esquecem-se de dizer que esses aumentos, na sua maioria, são para pagar serviços a prestadores ou para seguir a outra via que está a dar cabo do Serviço Nacional de Saúde, que tem sido a de se pagar ao setor privado para receber os doentes do serviço público. É como entregar ao carrasco a corda com que há de enforcar-nos! É necessária uma revolução contra esta violência, contra este assassinato do Serviço Nacional de Saúde! Posso até não saber exatamente como fazê-la, mas sei pelo menos que este caos diário, a competição e a desconfiança em vez da cooperação, minam a vida e a saúde mental dos profissionais e a probabilidade de uma reação organizada a este caos. E resta-nos concluir, face ao descalabro a que se assiste, que as consequências são principalmente de três ordens. Primeiro, as pessoas que não se adaptam a esta anarquia e injustiça e abandonam o sistema, agravando os problemas. Segundo, quando não o fazem, resistem ao caos e à injustiça a que os sujeitam, o que aumenta os conflitos. Terceiro, todo este fogo cruzado resulta em menos saúde para todos com mais dinheiro gasto pelo contribuinte. O maior investimento que se poderia fazer no Serviço Nacional de Saúde seria, para começar, retirar de lá a gestão partidária! Mas é tal o nepotismo no Serviço Nacional de Saúde que isso seria quase como deixar um navio sem marinheiros. Ou os partidos… sem boys!
Doentes, gestores, tarefeiros e boys
“Diz-se que nunca houve tanto investimento na saúde, mas esquecem-se de dizer que esses aumentos, na sua maioria, são para pagar serviços a prestadores ou para seguir a outra via que está a dar cabo do Serviço Nacional de Saúde, que tem sido a de se pagar ao setor privado para receber os doentes do serviço público. “