Perdoe o leitor que o desengane tão cruamente, mas o 202 dos Campos Elísios não existe. Idêntico desencanto experimentei eu quando, de canhenho na mão e polaroid a tiracolo, debalde procurei na famosa avenida o palácio do “meu Príncipe da Grã-Ventura” – como diria o Zé Fernandes. Saíram-me, naturalmente, vernaculidades contra o Eça, que iam muito além do «Irra! é demais» soltado no romance pelo velho Galeão.
Há muito que desejava mapear a “Cidade e as Serras”, da Ville Lumière a Tormes, Santa Cruz do Douro, aliás – eixo que passa necessariamente por Salamanca já que o romancista por ali esteve em 1899 (um ano antes de falecer, portanto) e em carta ao amigo Conde de Arnoso – seu confrade nos Vencidos da Vida – exclamara de lá um «Helás! Estou em Salamanca». Durante três dias, do Quartier Latin ao Boulevard Saint-Michel, do Théâtre de l’Odéon à Sorbonne sem esquecer Montmorency e L’Opéra do Palais Garnier, obviamente, replicamos os passos de Jacinto e reescrevemos as equações positivistas que levam à suma felicidade em qualquer sociedade cosmopolita, ora essa. E folhearíamos até o “Journal des Débats” – onde escrevera um Berlioz e um Bourget e o próprio Balzac chegara a publicar folhetins – se fosse possível encontrá-lo ainda num desses “quiosques” férreos de Montparnasse. O “Le Figaro” – isso sim, mas nem dá vontade folhear o papelucho, tão desfasado está da linha editorial de pendor literário traçada por Hippolyte de Villemessant, onde Zola começou a denunciar o famoso “Affaire Dreyfus”. Mas Paris queirosiano transcende o narrado novelesco em apreço: três residências teve aí o autor de “Ilustre Casa de Ramires”: o nº 5 da Rue Crevaux, o 32 da Rue Charles Lafitte, Neuilly-sur-Seine – moradia à ilharga do Sena frequentada por Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Feijó, Batalha Reis, António Nobre, Carlos Mayer, Alberto de Oliveira, Carlos Lobo d’Ávila, entre outros. A casa onde o escritor sublime vem a falecer, em 1900, fora demolida nos anos 70, situada no que é agora o nº 38 da Avenue de Roule, Neuilly.
E aferventando a dicotomia urbs/ pagus fui em demanda da toponímia de outras latitudes presente no romance derradeiro. Salamanca, a seguir. Eça pernoita na “Fonda del Comércio” – uma hospedaria que existia na Calle del Concejo, na Plaza de los Bandos. Aí se enamorara da cidade «toda feita de uma bela pedra amarela, cor de velho doce de ovos», «mais trabalhada que uma baixela de prata» e se inspirara para rebatizar a Quinta de Santa Cruz do Douro: esta passava a ter, para todo o sempre, o nome do rio que banha a cidade – Tormes. Rumei, depois, àquelas paragens de encanto, qual Jacinto empanturrado de civilização. Melchior, o caseiro, parecia receber-me. «Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte». O vetusto solar, abençoado por uma miniatural capelinha do século XVI é a morada terminal do Jacinto, o 202 perdido no meio das terras de Baião. Acha-se implantado num mirante deslumbrante, sobranceiro ao Douro e aquelas paredes solarengas zelam agora pelas memórias mais íntimas do criador de Jacinto: o seu mobiliário e os seus objetos de uso quotidiano, como seja a sua escrivaninha de pé alto, onde habitualmente escrevia, o seu quarto, a sua biblioteca, o seu monóculo e o seu ficheiro de notas, os quadros e as fotografias – tudo o que estava afinal na casa de Eça em Neuilly. Recolhi ao espírito da casa e recordei Paris. Percebe-se que há em todos nós uma vontade dividida entre a paz e o vórtice – “entre les deux mon coeur balance”. E dou por mim de narinas aneladas em direcção à cozinha, de onde parece vir um odor talvez mais literário que gastronómico:
– “Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!”
* Escritor