Quando a pandemia provocada pelo vírus Covid-19 começou a tomar proporções maiores e os portugueses foram votados ao confinamento gerou-se uma corrente de altruísmo em que a generalidade das pessoas deu um pouco do que tinha e em que se gerou a sensação de que tudo deveria estar acessível de forma gratuita ou a um baixo custo. Muitos foram os que se apressaram a afirmar que as consequências do confinamento iriam acabar por tornar as pessoas mais próximas e mais gentis, recuperando a fé numa humanidade perdida.
Mais de um ano e meio depois, creio que estamos em condições de reconhecer que estávamos todos enganados. O presente contexto permitiu-nos perceber melhor o nosso egoísmo e egocentrismo. Levou-nos a concluir o quão pouco empáticos subitamente nos tornamos e o quão somos insensíveis para os problemas que os outros possam ter.
Subitamente, passámos a querer apenas sair de casa, fazer a nossa vida o mais rápido possível – o que implica não encontrar muitas pessoas –, tudo sempre executado sem levantar os olhos do chão durante a grande maioria do tempo a fim de evitar contactos e sentir-nos ultrajados por existirem pessoas com prioridade, como grávidas ou idosos. No meio de tudo, nem um sorriso ocasional temos de demonstrar porque o nosso rosto caminha escondido por detrás de uma máscara.
Passamos o tempo numa luta interior entre solicitar ao indivíduo da frente para colocar o nariz dentro da máscara, pedir à funcionária da caixa que desinfete o terminal multibanco ou simplesmente dizer àquela senhora que não deve pegar na fruta, apalpá-la e, depois, colocá-la de volta no sítio onde estava.
Ainda quase sempre nos debatemos com os novos detentores de poder, que são aquelas pessoas cujas profissões eram discretas e pacatas, mas que, subitamente, passaram a sentir-se legitimados para serem antipáticos e, por vezes, até pouco caridosos. Fazem-nos sinal para parar, para avançarmos, mandam-nos chegar para trás da linha, tudo em linguagem de comando e sem margem para despiste. Já ninguém nos guarda um saco, nos fica com uma encomenda, já não nos permitem ir à casa de banho quando estamos mesmo aflitos…
Que confusão! Os estabelecimentos e instituições criam as suas próprias regras internas, mas depois não consciencializam que umas colidem com as outras e que tornam tudo ainda mais complexo. Até nos lares de idosos nos fazem um enorme favor para nos deixarem dizer adeus do lado de fora do portão aos nossos avós, que até estão na rua, sentados, a apanhar sol. A justificação é porque não há marcação ou por qualquer outro motivo desprovido de sentido, mas cuja racionalidade não admitem ser questionada, parecendo, agora, haver mais legitimidade para fazermos o que pretendemos e que passa, em grande medida, por dificultar a vida aos outros, como forma de contestação do mundo em que vivemos e de exorcizar as nossas próprias revoltas e descontentamentos.
Os primórdios da pandemia e do confinamento passaram. E depois de uma primeira lufada de esperança na humanidade e de felicidade pela sua capacidade em se unir em torno de um inimigo invisível comum, ficámos com as suas sequelas. E estas passam por termos voltado a um egoísmo profundo, a um protecionismo extremo dos nossos interesses e da nossa segurança e no facilitismo com que passámos a ignorar os outros, escondidos por detrás de uma máscara cirúrgica.
* @joanadente
Jurista / Makeup Artist / Fashion Stylist