Comboios que se perdem demasiadas vezes I – Ecossistema Tecnocientífico

Escrito por Pedro Fonseca

“Há comboios que se perdem porque só passam uma vez. Há comboios que se perdem apesar de passarem várias vezes. Há comboios que se perdem mesmo quando se encontram estacionados à nossa porta…”

Longe vão as décadas de 1980 e 1990 em que os municípios competiam pela atração de grandes empresas que se fixassem nos seus territórios e criassem empregos na ordem das centenas e dos milhares. Para os concelhos do interior, em luta permanente contra a sangria populacional e a ausência crónica de investimento, a captação destes “grandes empregadores” revestia ainda maior relevância.
No auge do seu funcionamento, a Delphi chegou a empregar cerca de três mil trabalhadores na Guarda. Contribuiu, assim, para a retenção de população local e a atração de pessoas de concelhos vizinhos. A zona envolvente à unidade industrial fervilhava com vida, com a Guarda-Gare a acolher dezenas e dezenas de espaços comerciais dedicados a diversos setores de atividade.
Muito mudou desde o encerramento da Delphi, em 2010, sobretudo nos planos demográfico e laboral. De tal modo que, hoje em dia, a instalação de uma empresa idêntica na Guarda imporia um esforço ainda mais exigente. À escassez deste tipo de empresas e à concorrência de concelhos vizinhos, teríamos agora de acrescentar a dificuldade de contratar cerca de três mil trabalhadores num território cada vez mais desprovido de população ativa.
A retenção e atração de população por parte dos territórios do interior tem, pois, de explorar vias alternativas, tendo em consideração a nova realidade demográfica e laboral, mas também a revolução digital em curso. Neste capítulo partem em clara vantagem os municípios que, nas décadas de 2000 e de 2010, apanharam o “comboio” das incubadoras e dos programas de aceleração de empresas e que souberam, com o apoio inestimável das instituições de ensino superior, ir consolidando ecossistemas favoráveis à criação e atração de empresas e à formação (inicial e contínua) e fixação de profissionais da área digital.
Para os municípios que perderam o referido “comboio” nunca é demais lembrar que, sem o envolvimento ativo de instituições de ensino superior no processo, a criação dos referidos ecossistemas não passa de uma miragem: podem anunciar-se mil e uma incubadoras, mil e um espaços de “coworking” e mil e um apoios ao empreendedorismo, mas a soma final ficará sempre mais perto do zero do que do resultado esperado.
Na Guarda, foi o próprio Instituto Politécnico da Guarda a propor a criação de um Ecossistema Tecnocientífico Avançado, alicerçado numa Incubadora de Empresas Desnuclearizada, num Centro de Competências em Blockchain e num Programa de Atração de Nómadas Digitais, três iniciativas capazes de funcionarem como polos de formação, retenção e atração de talento e de investimento para todos os concelhos do distrito da Guarda.
Contudo, face à limitação de recursos próprios e à ausência de apoios externos, corremos o sério risco de ver o projeto pioneiro do IPG a ficar circunscrito ao reino das “boas intenções” no preciso momento em que o que o interior mais precisa é de “boas ações”.
Há comboios que se perdem porque só passam uma vez. Há comboios que se perdem apesar de passarem várias vezes. Há comboios que se perdem mesmo quando se encontram estacionados à nossa porta…

* Historiador e ex-presidente da Federação da Guarda do PS

Sobre o autor

Pedro Fonseca

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