“Bairro da Caixa”: vidas contadas de trás para a frente

Escrito por Thierry Santos

“Resultante de um processo de realojamento, o Bairro da Caixa designa um conjunto de blocos de apartamentos de sete andares para habitação social, sem elevador, erguidos nos anos 60. Chegou a ser o bairro mais populoso da cidade (…)”

Três anos depois de publicar “Um Café no Centro da Cidade”, Carlos Adaixo deu à estampa “Bairro da Caixa”, em 2016. É a mesma «cidade de província» que é encenada e celebrada, a mesma preocupação sociológica em contar a sua evolução. No final, é igualmente introduzido na diegese um elemento de surpresa, a revelação por que personagens e leitores não esperavam. Só que o fulcro da estória já não versa sobre adultos que evoluem no centro urbano dos anos 60, mas sobre um grupo de adolescentes, na década de 70, que mora num bairro social, contíguo ao campo.
De um livro para o outro, a voz do texto, que continua jovial e mesuradamente presente no discurso, prossegue na sua intenção de explorar frações do tecido urbano, cujo nome nunca é referido, e que não deixa de ser o protagonista deste díptico romanesco proposto pelo autor, a que se poderia juntar o conto “A velha rua da infância”, publicado em 2021. Através das três ficções literárias, dá-se ao leitor a possibilidade de mergulhar no imaginário de uma cidade do interior dos anos 60 até aos dias de hoje.
Resultante de um processo de realojamento, o Bairro da Caixa designa um conjunto de blocos de apartamentos de sete andares para habitação social, sem elevador, erguidos nos anos 60. Chegou a ser o bairro mais populoso da cidade em questão: muitas famílias numerosas, mas funcionais, roupa estendida às janelas, crianças o dia todo na rua, pequenas rixas, mães a braços com a gestão do quotidiano, casos de alcoolismo, testemunhos de solidariedade nos momentos dramáticos.
O “Bairro” representa o espaço de experiência dos sete amigos na passagem da menoridade para a maioridade: a descoberta deles próprios, nos confrontos, nas humilhações e nos namoros. Constroem-se e individualizam-se no círculo dessa amizade que o bairro cimentou. Assistem aos frenesis e deslizes da Revolução de 74, tentam compreender as discussões políticas em contexto de PREC e alguns deles irão tomar parte naquela greve de ocupação do liceu, no início de 1975, interrompida ao fim de 18 dias, após uma intervenção de tropas do RI 12. O grupo dispersa-se em 1976: três seguem para o ensino superior, os outros poem-se ao trabalho. Não são malsucedidos, mas vivem ao sabor de «rotinas sem glória». Quarenta anos mais tarde, um acontecimento volta a reunir seis deles naquela escada do bairro, o então ponto de encontro do grupo quando jovem.
As personagens dão a (re)descobrir ao leitor a cidade desse tempo: o café mercearia do bairro, as escolas (Santa Zita e Santa Clara) e o liceu, o gesto precoce de fumar, as ruas do centro, a livraria (Académica), a moda das calças boca de sino, o quartel dos bombeiros (em frente ao Museu), os bailes dos santos populares, a relva do parque, o gelado saboreado no jardim (José de Lemos), o café Neves (o Monteneve), a sala de cinema (o CineTeatro), o hospital (da Misericórdia) e a igreja (idem). Mas com o tempo tudo muda: boa parte da geração dos protagonistas sai do bairro, fazendo pela vida noutras paragens. A urbe foi-se expandindo e o bairro mirrou, por dentro e por fora.
É crível que as situações vividas pelos rapazes no romance sejam baseadas em experiências por que passou o próprio Adaixo ou que lhe foram reportadas por testemunhas diretas. O autor parece assumir-se como pintor do quotidiano desertado pelas fadas. Com vidas ritmadas por vitórias morais e derrotas simbólicas, nenhum dos protagonistas se sente, dobrado o cabo dos cinquenta anos, realizado. Entre o tom irónico e a nostalgia agridoce, o texto não poupa a sociedade portuguesa, caricaturando-a, pois ao cidadão comum não é permitido sair do atoleiro do país mediano.
Tudo somado, a obra apresenta-se como um fresco social que traz um testemunho sem preconceitos sobre lugares da típica cidade do Interior, sem deixar de ser o romance da Guarda, anterior ao IPG e ao Polis, subjazendo nele a geografia sentimental do narrador. O texto restitui a cultura em que o mesmo mergulhou e da qual extrai energia e emoções, através de modismos linguísticos e de uma sugestiva banda sonora, que tanto deve aos Pink Floyd como ao acordeonista de bailes populares, passando pelos U2. Muitos leitores hão de reconhecer-se naquelas personagens e naqueles lugares. Oxalá a Guarda não perca a capacidade de deixar a mesma marca indelével nas novas gerações…

Sobre o autor

Thierry Santos

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