Essas eram as minhas botas, ouvia de vez em quando o meu tio dizer, pegando-lhes e olhando-as com um olhar sereno e muito cristalino, apenas a boca se mantinha quase fixa como se as palavras brotassem vindas do chão num estrondo.
Eram umas botas estranhas e ainda muito elegantes ao meu olhar e conjugavam-se com a minha curiosidade. Eram umas botas castanhas com a pele quebrada e que sempre se mantinham engraxadas e com uns cordões que subiam pelos hilhózes acima e se atavam em dois nós bem firmes.
Umas botas assim, umas botas enormes para os meus pés, eram um desafio para sonhos e brincadeiras e desejos de um dia as poder calçar.
Estas botas repousavam numa prateleira ao lado de duas malas numa despensa sob uma escada que dava para um sótão de onde se avistava o mar, o arvoredo das redondezas e as torres altas que desenham a cidade junto ao céu.
Era raro tocar-lhes, mas, quando o meu tio vinha passados longos meses de ausência, surgiam sempre as mesmas perguntas que muitas vezes reprimi: porque estavam ali aquelas botas? Porque viajava o meu tio sem elas nem aquelas belas malas? Tudo era muito obscuro para a minha idade como fenda onde encostar o rosto ou ninho desapossado das suas aves.
Um dia, em dezembro, lembro-me bem, pois tinha nevado e fazia um frio intenso, decidi desafiar a sua memória ou, esperava eu, a sua intransigente respidez sobre o assunto ou mesmo algo que, em absoluto, ignorava e a minha desvairada inquietação ou imaginação ainda não atingia.
De facto, olhou-me com o seu olhar sereno e cristalino, foi buscar as botas e como se nelas caminhasse sem ardor ou perturbação, apenas um instante estremecendo como se de súbito o destino o acordasse e frágil fosse no instante a luz do dia na sua consistência ou velocidade, abriu a boca e do chão, como sempre, começaram a vir estrondos e correrias e gritos, coisas que eu nunca tinha ouvido ou imaginado, do chão, da sua boca, começaram a aparecer trincheiras e buracos, tábuas e pregos, tachos e panelas e corpos retalhados, o som estridente de balas, correrias e mergulhos para lugares imprevistos, vozes estranhas, restos de fardas e capacetes, pedaços de pernas e braços, árvores e giestas e poeiras elevadas a alturas inimagináveis, sangue escorrendo para o interior da lama, escorrendo e empapando a vermelho o cinzento das fardas, gazes nauseabundos que ardiam nos olhos e garganta, gritos, rezas, vozes dando ordens e contra-ordens, e sempre um vento inútil que não afastava o cheiro a querosene e podridão, espingardas e pistolas disparando tiros para algures, solidões cedendo ao terror os seus queixumes silênciosos, barreiras de arame farpado e corpos espalhados em catadupa, silêncios de penumbras vestidos e céus estrelados por silvos de obuzes e morteiros, gargantas sedentas pediam água e outras que os matassem de socorro, alguns confiavam fotografias e cartas a outros que desejavam ver dali sair vivos, na verdade, a sua morte longe afivelara-lhes no rosto o luto esperado, a doença, a fome, eram heróis ignorados, eleitos como verdadeiros guerreiros ou combatentes, eram corpos movendo-se no interior da noite fluíndo para o abismo, terão escrito poemas, certamente, à luz de um cigarro bebendo álcool para não ignorarem o inimigo que desconheciam, mas sabiam ali perto, muito perto, olhando-os para os ver assim morrer crepusculares – a vida ali era um estreito caminho dobrado numa mão suada e ensanguentada, dizia o meu tio envelhecendo a cada palavra.
O meu silêncio, o meu olhar escutante, não lhe passaram despercebidos na sua azáfama de me contar uma história repeleta de dor, medo, raiva, ódio e sofrimento e morte, nem a minha falta de perguntas o demoveram de continuar narrando o que nesse seu tempo algo distante e em lugares ignorados viveu e sofreu dolorosamente, a sua surdez ficou encavalitada no seu olhar, mas, de repente, como se uma ave tivesse atravessado o negrume intenso da noite, uma ave talvez muito branca, que o obrigasse a erguer o olhar surpreendido para a ver passar, essa ave que vi serena esvoaçar no seu olhar cristalino e que o distraíu de continuar a desvendar-me a floresta de tristeza e humilhação, a névoa de vulnerabilidade e medo condescendente, o dramático sarcasmo ou descarnado pânico que precisava para definir a banalidade da morte e das suas condições abjectas, obrigou-o a parar e a olhar-me como se uma brisa de vozes e lume alcantilassem as suas palavras ou suportasse nos seus dedos elegantes o restolho das estrelas, disse-me confiável, mas sedento de ar como se eu não pudesse escutar um segredo insuportável e intensamente triste na sua beleza inóspita ou o tempo não me tocasse – foram as mais belas praias que vi na minha vida, as pequenas casas muito perto da areia, o mar tocando o céu azul ali sobre as nossas cabeças esperando a última noite do mundo.