A vida começa às oito

Escrito por Fidélia Pissarra

No nevoeiro, à entrada da empresa, confundem-se as gabardines com os casacos de lã. Não sabemos de onde vêm, para onde querem ir ou que raio os trouxe até aqui. E ainda bem. Conhecêssemo-los melhor que, provavelmente, pior ficaríamos. Já das portas da entrada da empresa, de tão compenetradas no vaivém com que tentam dissipar o ar cabisbaixo de quem as transpõem, achamos que sabemos tudo. Mas como de portas, mesmo das de vaivém, não reza a história e de tudo o que achamos saber sobre elas também não, de nada nos há de adiantar perder tempo a pensar nelas. Por isso, mais vale deitarmo-nos logo às almas sem olhos que as atravessam para tentar perceber porque é que, aparentemente, todas começam por se convencer de não terem nascido para aquilo, de atravessar a mesma porta indefinidamente, e acabam capturadas por quem as faz sentir assim colocando-lhe as portas à frente. Claro que já sabemos que a realidade de cada um é a realidade de cada um. Mas também já sabemos que se o vermelho, não for vermelho para todos – excluindo os daltónicos, obviamente – ninguém se consegue entender. Ora se conseguimos que o vermelho, o verde, o azul e as outras cores todas, sejam vermelho, verde, azul e as outras cores todas para toda a gente, porque é que não conseguimos que a verdade seja verdade para toda a gente também? Que outra utilidade não tivesse, sempre havia de pôr alguma cor e modo naquela gente.
Se não fosse pelo que não podendo ser juiz, pode ser advogado, pelo que critica nos outros o que defende para si próprio, pelo que sentencia na praça pública quem nem um décimo dos seus próprios crimes praticou, até dava para pensar que era por não se querer. Assim, será melhor começarmos a pensar que talvez seja por se concordar com que assim seja. Todos se enganam e, sobretudo, enganam-se entre si. Por outras palavras, é mais ou menos o contrário do que nos ensinaram em pequeninos: mente. Mente muito. Quanto mais e mais descaradamente mentires, para além de não te acontecer nada, ninguém te castigar por o fazeres, mais a sério serás levado. E, mesmo que não seja a sério, se mentires, de certeza que és levado. Levado a ser presidente de uma qualquer coisa, diretor de uma coisa qualquer e por aí a fora, sem sequer precisares de ter uma grande memória que ajude a sustentar as mentiras. Podes mentir, desmentir e voltar ao princípio que, quanto mais vezes o fizeres, mais vezes terás quem concorde contigo. Ser honesto, ao contrário do que já foi e nos ensinaram, está completamente fora de moda. A tendência atual é para que se seja iletrado, ignorante e, como não poderia deixar de ser, mentiroso. Quanto mais, melhor.
A não ser que prefiras a verdade. Se preferires a verdade, não vais tolerar mentiras, nem mentirosos. Talvez te safes do nevoeiro que confunde gabardines com casacos de lã. O que, não parecendo lá grande coisa, sempre dará para te pôr um sorriso nos lábios, quando vais trabalhara às oito, e uma gargalhada no peito lá pelas outras oito. As da noite.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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