A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“No largo do Carmo o megafone substituiu o cavalo de madeira. No lugar dos guerreiros estava o povo inteiro. E o olhar de brilho e comoção. Todas as esperanças no “dia inicial inteiro e limpo”. Os cravos a nascer nos canos das espingardas. Os braços dados. As palavras de ordem. Um futuro pleno de liberdade.”

Os deuses sempre invejaram os humanos. A sua imortalidade cansa-os. São milénios de intrigas e relações que os vão desgastando. Ainda que os seus trajes imitem os dos homens sabem que terão sempre o signo da invisibilidade. Por vezes metamorfoseiam-se acreditando chamar assim a atenção. Que alguém repare neles e sinta esse leve sopro da deslocação do ar.
Aquiles ao nascer foi mergulhado nas águas do rio Estige pela mãe. O desejo de impregnar o filho de imortalidade fez com que esquecesse, no momento da imersão, que o segurava pelo calcanhar. Haveria de ser o seu ponto vulnerável.
Salgueiro Maia nasceria alguns milénios depois. A mãe não teve tempo de o tornar imortal. Um atropelamento revelar-se-lhe-ia fatal quando ele era ainda criança. Haveria de crescer como a maioria dos humanos. Frequenta a escola ao sabor das deslocações provocadas pela profissão do pai. Apesar de ter carregado uma profunda tristeza pela prematura morte da mãe arranjaria subterfúgios que poderiam, por vezes, provocar comportamentos nem sempre bem entendidos, como quando comprou um 2 CV cor de laranja, que exibiu pela cidade buzinando.
Quando decidiu entrar na Academia Militar, em Lisboa, chumbou na primeira tentativa. Por ter baixa estatura falhou a prova ao saltar um muro alto. Ninguém sabia que obstáculos maiores e mais nobres seria capaz de superar. Sem desistir, que Maia não era de deixar para trás os seus objectivos, acabou por ingressar na Academia.
Aquiles apesar da protecção da mãe, estava destinado a combater na guerra de Tróia. Os deuses arranjam sempre soluções para que o destino se cumpra. É o seu imenso poder sobre os homens. Acabaria por partir com Pátroclo e milhares de outros gregos rumo a Tróia mesmo sabendo da previsão do Oráculo. Quando Pátroclo envergou a armadura de Aquiles, fazendo-se passar por ele, todos o seguiram. Acabaria por ser morto por Heitor, convencido estar a lutar contra Aquiles.
Quantos companheiros Salgueiro Maia viu cair nos campos de batalha, nessa guerra em que de início acreditava? Que dor terá tomado conta dele para, aos poucos, se aperceber que a luta era inglória e que apenas uma solução política, através da mudança radical de regime, conseguiria pôr fim a treze anos de guerra.
Dez anos durara a guerra de Tróia.
Tinha vinte e nove anos na noite em que a sua voz suave e firme levou com ele, rumo a Lisboa, duzentos e quarenta homens. Era urgente “acabar com o estado a que chegámos”.
Enquanto Aquiles foi assolado pelo desejo de vingar Pátroclo, Maia acreditava em causas e não em homens providenciais – “Só fiz o que tinha de ser feito” terá afirmado.
O “capitão sem medo” haveria de cercar os ministérios do Terreiro do Paço e forçar a demissão de Marcello Caetano refugiado no quartel do Carmo. Não sem antes, com risco de vida, neutralizar, desarmado com apenas uma granada no bolso, um quarteto de blindados de quarenta e sete toneladas cada um, da Cavalaria 7, uma força fiel ao regime. Numa fotografia, feita momentos depois, morde o lábio “para não chorar”.
Para tomar Tróia os gregos contruíram um colossal cavalo de madeira que os troianos consideraram oferta dos deuses. De dentro sairiam, durante a noite, os guerreiros. Aquiles estava lá. Ulisses também. Tróia acabaria reduzida a escombros.
Maia não precisou de nova armadura nem de novo escudo ricamente ornado a detalhes.
No largo do Carmo o megafone substituiu o cavalo de madeira. No lugar dos guerreiros estava o povo inteiro. E o olhar de brilho e comoção. Todas as esperanças no “dia inicial inteiro e limpo”. Os cravos a nascer nos canos das espingardas. Os braços dados. As palavras de ordem. Um futuro pleno de liberdade.
Aquiles morre com uma flecha no calcanhar contrariamente ao desejo de imortalidade que a mãe tivera. Salgueiro Maia morrerá de uma terrível doença. De Aquiles ninguém sabe o túmulo. Salgueiro Maia quis ser sepultado em campa rasa, na terra onde nasceu, ao som de Grândola, Vila Morena.
Nem Aquiles, nem Maia foram ressuscitados pelo divino doce com sabor a Ambrósia, esse manjar dos deuses com poderes de cura. No entanto, cada um à sua maneira, tem um lugar de destaque na memória dos homens. Maia sempre recusou o epíteto de herói. Fez “o que tinha de ser feito”. E não é isso que distingue os heróis do comum dos mortais?
A Salgueiro Maia, meu herói.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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