A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Permanecemos ligadas. Temo-nos apoiado mutuamente. As redes sociais têm a sua utilidade. Envia-me poemas, pequenas histórias, fotografias. Apesar da distância temos estado próximas em momentos mais difíceis. “

Chegou naquele Outono ainda quente. Tinha dezassete anos e vinha de Córdoba, a segunda maior e mais populosa cidade da Argentina. Quando se candidatou ao programa AFS – uma espécie de Erasmus para jovens, até aos dezoito anos, foi acolhida na casa de uma senhora viúva, numa terra perdida no interior do país, de nome Açores. Mais tarde contaria da confusão com algumas das ilhas do arquipélago dos Açores. A casa ficava numa quinta e a certa altura o caminho era de terra batida. Lembro de um dia a levarmos no carro de uma amiga, era noite e de vez em quando o carro batia nas rodadas secas de lama. A dona do carro, que tanto o estimava, lamentava-se ao que ela respondia – é apenas um bem material!
Quando entro na aula de 12º ano e vejo aquele rosto novo, pele escura e cabelos negros, pergunto quem é e o que fazia ali. Fiquei de imediato inteirada. Frequentaria o ano lectivo como qualquer outro aluno. A forma decidida com que falava agradou-me. Gosto sempre de alunos que sabem ao que estão. Com o correr do ano a língua portuguesa deixou de ser obstáculo. Pedia-me livros emprestados sobre os quais tínhamos depois longas conversas. Os colegas olhavam-na com desconfiança. A sua forma de ser e a maturidade demonstrada faziam despertar alguma inveja. Não usar calças de ganga, reutilizar a garrafa de vidro para beber água, gostar de roupas da avó ou da tia não eram práticas comuns por estes lados.
O tempo foi arrefecendo e um dia teve necessidade de comprar roupa mais quente. Recordo aquelas botas de camurça de um azul anil. A primeira vez que viu neve tinha-as calçadas e o efeito sobre o branco ficou-me para sempre gravado. Foi-se habituando à calma silenciosa da quinta onde regressava todas as tardes, afeiçoou-se às galinhas e aos gatos. Fez amigos. De vez em quando mostrava-me fotografias. Tinha enorme orgulho na sua máquina analógica pesquisada entre sites da internet à qual chamava Jacinta. Eram fotografias com alma. Como se continuasse a ser possível sentir o vento a tocar-lhe o cabelo ou as ervas a balouçar. Nas nossas conversas passei a chamar-lhe “miúda do vento azul”.
Inquietava-nos com as suas intervenções e a forma de olhar o mundo, a vida e os objectos. Coleccionava pedacinhos de cerâmica colorida que ia encontrando no chão. Um dia alinhou-os e tomaram a forma de uma verdadeira obra de arte. Como se ali, colocados uns ao lado dos outros, refizessem uma história comum. No seu “cuaderno”, que foi engrossando com flores secas, pedaços de papel, fotografias ou pacotes de açúcar, anotava as impressões de um mundo novo.
Perto do final do ano lectivo a senhora onde vivia teve que se ausentar para o estrangeiro. Passou, então, a viver na minha casa. A proximidade foi crescendo. Começou a apreciar sabores que desconhecia. Ficávamos horas sentadas no chão da sala a ouvir música e a comer cerejas: – as palavras eram mesmo como as cerejas –. Um dia perguntei-lhe sobre o medalhão que trazia sempre com ela e fiquei a saber do seu amor e dedicação à família. Dizia que queria ter dois verões e que a linha do equador não podia separar os mares nem a amizade. Bebíamos chá de “hyerba mate” e prometeu que havia de mandar uma fotografia de uma verdadeira “hamaca paraguaya”.
Quando me perguntou que nome dava à minha escova de cabelo fiquei perplexa. Jamais teria pensado chamar familiarmente, pelo nome, a minha escova de cabelo. É certo que nos tocamos todos os dias. Mas um nome? E relatou uma lista de nomes que dava a alguns objectos. Na memória ficou-me a bicicleta Evarista. Gostava de objectos em segunda mão, antigos e usados por trazerem com eles outras histórias.
Quando teve que partir, entre promessas de continuarmos a comunicar e de que eu iria um dia à Argentina e ela regressaria a Portugal, um vazio feito saudade ia de encontro às paredes da casa. Quase que a via subir à cerejeira. Ou a rir. Aquele riso espontâneo de dentes brancos na pele escura que fez com que por vezes lhe chamasse “minha negrita”.
Continuo na mesma casa. Ela foi vivenciando experiências que não a satisfaziam. O desejo de regressar esteve sempre latente. Até que foi ao Brasil. Aí vive numa pequena casa junto à praia. Aprendeu a fazer massagens, meditação e Yoga. Dança muito. Descalça na areia com outras mulheres. São danças ritualizadas e libertadoras. Alguns fotógrafos chamam-na para modelo. Ela vai. Tem o dom de se transformar em deusa ou feiticeira. Faz parte da terra. Fala com a doçura de quem sabe por onde vai.
Permanecemos ligadas. Temo-nos apoiado mutuamente. As redes sociais têm a sua utilidade. Envia-me poemas, pequenas histórias, fotografias. Apesar da distância temos estado próximas em momentos mais difíceis. Passaram doze anos. É hoje uma mulher. Eu vou envelhecendo e continuo a tentar perceber a importância de um dia nos termos cruzado. Aqui.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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