A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Foram desaparecendo as cartas escritas à mão onde pressentíamos a emoção no silêncio de cada palavra. Os vagares vão-se apagando. Uma certa estranheza acaba por incitar a dança. Como se a solidão nos tranquilizasse.”

De costas para nós observa Paris do cimo de Montmartre. Adivinha-se, naquele corte de cabelo “a la française”, a beleza do rosto. Será quase impossível que nos enganemos. Deve ser meio da tarde já que Yann Tiersen lhe toca uma canção infantil de outro Verão. Ao longe, Paris devolve alguma da solidão de Amélie. O mundo é redondo preenchido de betão. Ela quer respirar. Lançar os seus sonhos ao vento. Que cheguem a casa de cada um como um raio de veludo. Que entrem pelas janelas abertas, pelas frinchas das portas. Que abram brechas nas paredes. A sua tristeza é sempre bonita. Os lábios polposos. A pele que apetece tocar. Como se tocando pudéssemos entrar dentro da sua realidade. Seremos capazes de resistir àquele olhar vivo que nos desconstrói e nos devolve a simplicidade da infância?
Amélie gosta dos pequenos prazeres. Deixa a imaginação correr livremente e nas coisas mais simples encontra satisfação. Como criança atrevida mergulha a mão em sacos de grãos, quebra o creme queimado com uma colher e atira pedras ao longo do Canal Saint-Martin. Gosta de mexer com a vida das pessoas. De as fazer felizes. É sua missão produzir esquemas que levem um pouco de contentamento aos que a rodeiam. Escreve cartas, reconcilia amantes, incita a novos caminhos. É uma edificadora de sonhos. Nem sempre tem que usar palavras. Estas podem ficar longe. Yann Tiersen vai ritmando o pensamento e o sentir das coisas. Amélie vai expandindo vida numa transparência de voz interior.
Foram desaparecendo as cartas escritas à mão onde pressentíamos a emoção no silêncio de cada palavra. Os vagares vão-se apagando. Uma certa estranheza acaba por incitar a dança. Como se a solidão nos tranquilizasse. Mas aquela perturbação latente vai perseguindo cada um e a repetição de uma pintura de Renoir jamais será capaz de captar a essência de uma rapariga a beber um copo de água. Amélie sabe que é ela. A sua solidão tão difícil de retratar. A nossa também.
Talvez nos falte descobrir Nino. Aquele rapaz que colecciona fotografias de estranhos e as dispõe religiosamente num álbum. Teremos que estar atentos para recolher a mala quando lhe cair da mota. Dentro dela guarda a sua própria solidão. Em cada folha de fotografias agrupadas. Marcaremos encontro no café 2 Moulins. Levaremos incógnita a nossa agonia. Se olharmos Nino corremos o risco de nos desfazermos em pequenos pedaços de cristal aquoso. Regressamos a casa. Chove sobre um guarda-chuva vermelho com bolas brancas. Pelo caminho observamos o mercado e a forma como as pessoas tocam e cheiram os vegetais. Atiramos mais uma pedra na água do canal como se nos libertássemos de nós. Sonharemos acordados. Escusamos a linguagem quando batem à porta. Basta encostar o ouvido para percebermos quem está do outro lado.
Não sabemos se é Amélie ou se somos nós quem abre num impulso. Encostamos os lábios e deitamo-nos na mesma cama. Nunca a palavra fora urgente. Apenas a mão que se dá por dentro. Ou o toque a rasar a pele. De manhã havemos de sentir Paris. Será veloz o nosso riso. A canção infantil de outro Verão continuará a acompanhar-nos até as ruas ficarem desertas. Ainda se escuta agora, ou terei sido eu que voltei ao topo de Montmartre.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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