A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Damos por nós a murmurar um réquiem. Cantamos para elevar este lugar e fazer transbordar a limpidez do silêncio. “

Primeiro ouvem-se os gritos. São milhares de homens de pé em cima de cavalos. Como loucos atiram setas e galopam em direcção às tropas inimigas. Num massacre decepam cabeças enquanto o dragão cospe fogo. As labaredas com mais de quatro metros incendeiam pessoas, animais e carroças de uma só vez. O chão cobre-se de corpos carbonizados. A batalha ocupa os últimos dez minutos do quarto episódio da sétima temporada da “Guerra dos Tronos”. Ali, naquele lugar-refúgio.
Quando nos aproximamos não imaginamos o que nos espera. Julgamos que já vimos tudo e que a Natureza não mais nos pode espantar. Até depararmos com aquela paisagem dominada pelo granito esculpido em milhares de anos. Um catálogo de modelagem de pedra reduz-nos à insignificância. As águas de um azul puro adormecem nos lagos. Um pato bravo atreve-se a quebrar o espelho. Sedimentos emaranham-se como poalha milenar. Há vozes inesgotáveis que se vergam ao amor da manhã. E a terra pulsa. É o início dos tempos.
Impressiona a explosão de vida natural. Vassouras brancas, codessos, carvalhos, oliveiras, sobreiros e salgueiros alargam-nos a visão. A garça-real exibe-se como se não existíssemos e a cegonha branca recusa migrar. As lontras são sempre crianças que nos maravilham o rosto. Abrem-nos sorrisos. Uma ligeireza encharcada de silêncio acorda-nos para o sagrado na vastidão da luz. Fermenta a vida como se os astros ali tivessem repousado. Ao longe, uma pedra, não é mais que uma porta aberta. Espelha-se no lago para nos cegar. Acedemos. Porque havíamos de duvidar?
O mundo estancou ali. Somos os últimos homens. Tudo poderia ter sido reduzido a cinzas, as pessoas petrificarem em segundos e um enorme Vesúvio galgar oceanos para ali chegar. O Vesúvio também pode ser um dragão. Túmulos antropomórficos marcam a contiguidade do tempo. Vazios de corpos emitem metamorfoses e uma espécie de filme arranca-nos a memória. A quem pertence a coroa e quem domina o território? Não sabemos a quem fazer libações. Despertamos em sobressalto. A guerra terminou e não desejamos conhecer o vencedor. Não existe lugar para tronos nestas ilhas-refúgio.
Damos por nós a murmurar um réquiem. Cantamos para elevar este lugar e fazer transbordar a limpidez do silêncio. Duas pedras emergem da água. São dorsos humanos. Mutantes, a cabeça em mergulho. Arqueiam quando respiram. Neles depositamos a erosão dos ossos e a névoa dos dias.
«Tínhamos todos os brinquedos que possam imaginar» – terá afirmado o realizador. Mas para que nos servem se a gravidade continua a suster as pedras e a luz a criar espelhos nos lagos?

Sobre o autor

Maria Afonso

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