Eras um rio à espera da chuva. Sobre a terra, o mundo ia deixando para trás o fio de Ariadne. Na invisibilidade do silêncio rasgavas o labirinto. Escrevias febrilmente palavras inteiras onde cabia a obscuridade. Entre poemas o sangue se deslocava secreto até à incógnita região da alma. Trazias a lentidão dos objectos e o brevíssimo mover dos colares ao pescoço. A manhã era uma clareira onde talhar a verdade. Ias lançando sementes e o ritmo dos frutos haveria de ressoar a desejo.
Eu falava-te dos deltas e dos cardos dormentes nos meus braços. Da perspicácia com que a sombra resgata a luz. Alguns movimentos rondavam o vazio dos poços. Quase em surdina se balbuciava o amor. Uma existência sem morte nem a dor dos elementos suportava os verbos e abria passagem às derrocadas. No pensamento o som da água quando se bebe. Os pulmões reposicionados na radiografia que desacerta o mistério. Olhavas as minhas mãos, nomeavas os pássaros e cada imprevisto era um sulco. Uma garça. Um puríssimo sibilar.
Veio a noite a abrir a porta. Trouxe secura. Algumas fábulas foram-se moldando sobre frinchas abrindo caminho ao sabor do mosto. Um fortíssimo manto azul alastra hoje sobre a minha pele. A sabedoria acede ao alento de fogueiras que inflamam o rosto. Apenas o ímpeto se silencia na morosidade do vento. Buscamos nos lábios a rugosidade das árvores. Aí repousamos. Sabes como bafejar o sossego acidental da solidão e apagar as palavras mais fáceis. Reparas no pátio e brindas a flor do jacarandá. Será ainda vida essa sensação do peito a erguer?
Persistes em amar a errância. Os sinais quebrados onde se firma a vontade. Deténs a impermanência das nuvens e o descanso das pedras que te vêm à mão. Nesse vaguear silencias a escuridão. É triste o teu reflexo na água e o brilho alheado do cais. O dia é um cristal destroçado na cidade. Adormece o sol de olhos postos em ti. És o cansaço onde se crava o coração. Como criança respiras entre o riso e o desassossego. Olhas a nuvem e a poeira ocultando-te nas cicatrizes. O tempo é a tua obra e a sombra promete eternizar-se nas paredes.
É este o teu auto-retrato ou o meu reflexo à janela? Olha como perdura esse caminho de folhagem e sombra. Ainda assim, queres o instante. O fruto do rio. O tumulto dos relâmpagos. A memória encharcada da chuva. O vagar da vidraça onde as aves se espelham. O mundo calado. Varrido. A destreza dos passos. O atear da dança. O alongar do barco que rasa a minha voz.
A Inutilidade das Coisas
“Veio a noite a abrir a porta. Trouxe secura. Algumas fábulas foram-se moldando sobre frinchas abrindo caminho ao sabor do mosto. Um fortíssimo manto azul alastra hoje sobre a minha pele.”