Independentemente do vencedor das eleições presidenciais, o atual estado de divisão entre democratas e republicanos faz cair por terra qualquer esperança de conciliação pós-eleitoral. Há apenas alguns anos, os EUA eram um país de “duas direitas”, com uma fronteira bem demarcada em termos de valores e de matrizes político-ideológicas. De um lado, os republicanos, representando a direita mais conservadora e apologista de uma menor interferência do Estado. Do outro, os democratas, representando a direita mais liberal e defensora de uma maior intervenção estatal.
Durante muito tempo essa fronteira funcionou e permitiu aos EUA beneficiarem da estabilidade estrutural proporcionada pelo seu sistema de rotatividade bipartidária. Republicanos e democratas iam alternando no poder e, independentemente do vencedor, prevalecia sempre um sentido de união. Mas esse sentido de união entre os norte-americanos já não existe. Tal ficou bem evidente em janeiro de 2021, quando partidários de Trump recorreram à violência e atentaram contra uma instituição de soberania para expressar a sua recusa em aceitar a derrota.
As fileiras republicanas estão hoje inundadas de influentes propagandistas de teorias da conspiração e de membros destacados de religiões fundamentalistas cristãs. O candidato é um demagogo sem escrúpulos que, a cada oportunidade, procura agravar ainda mais a crescente polarização prevalecente na sociedade norte-americana. Mas, do lado democrata, as coisas não estão muito melhores: uma corrente de política identitária extremista e completamente desfasada do mundo real está a desvirtuar o seu ideário e a afastar personalidades de relevo. A candidata, cuja nomeação resultou de um processo pouco convencional, está longe de dar as garantias necessárias de estar preparada para o lugar.
Tudo isto tem contribuído para uma reconfiguração das prioridades da discussão política, com questões identitárias e culturais fraturantes a assumirem maior centralidade do que as tradicionais questões políticas, económicas e sociais. Como consequências diretas, o nível do debate político degradou-se e o distanciamento entre as partes aumentou. A decência que norteava o relacionamento entre democratas e republicanos, assim como a vida política dos EUA em geral, desapareceu quase por completo.
Com efeito, esta confrontação entre as duas fações assemelha-se cada vez mais a uma autêntica guerra civil entre “duas nações” que, partilhando o mesmo território, possuem diferenças irreconciliáveis e vivem sob um clima de ódio e de desconfiança crescentes. Por incrível que pareça, os norte-americanos estão a conseguir fazer o que a Alemanha nazi e a Rússia comunista bem tentaram, mas não conseguiram: estão a destruir os EUA.
No plano interno, Biden foi um excelente presidente. A economia norte-americana cresceu, o desemprego diminuiu e houve um investimento significativo em infraestruturas e energias renováveis. Mas, em termos de política externa, foi um desastre. Assinou a ordem de retirada do Afeganistão, devolvendo o país numa bandeja aos talibã. Foi incapaz de evitar o reacendimento da agenda imperialista russa e de impedir que uma ação militar legítima na Faixa de Gaza por parte de Israel se transformasse num crime humanitário de proporções colossais e no prelúdio de uma guerra de dimensão regional. Quando abandonar a Casa Branca, Biden deixará um mundo muito mais instável, beligerante e perigoso do que aquele que encontrou quando tomou posse.
Mesmo assim, ganhe Trump ou ganhe Kamala, nenhum estará ao nível do antecessor. A política externa dos EUA irá, pois, de mal a pior. Uma vez que todos os sinais apontam para uma rápida deterioração do contexto internacional, o mais correto será dizer que irá de mal a muito pior.
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