A doença, a ganância, o plano e as drogas

Escrito por Jorge Noutel

“O Plano não passa de um penso rápido carregado de morfina para alguém a morrer com um cancro terminal! Acreditar que as listas de espera se irão reduzir recorrendo a “vouchers” telefónicos a partir de um “call center” do SNS24 faz parte da fantasia!”

No final de maio o governo da AD apresentou o Plano de Emergência da Saúde, que incidirá na recuperação das listas de espera para consultas, cirurgias e exames, bem como na resposta de cuidados materno-infantis e nos cuidados de saúde primários.
Na minha opinião, este Plano não só não resolve os problemas existentes como até os agravará. Desde logo, os privados não vão ter capacidade para o executar. Depois, vai custar muito dinheiro ao SNS. Sim, serão sempre os dinheiros públicos a pagar os serviços que os privados estiverem na disposição de prestar. Por último, este Plano é mais um passo na privatização dos serviços de saúde em Portugal e na sua transformação no tipo de negócio que conhecemos antes do 25 de Abril. Este Plano funciona como a morfina dada a quem tem dores: há que aumentar a dose à medida que a situação se agrava. Os privados são a morfina do SNS, significam que o fim deste, se não aparecer um tratamento radicalmente diferente, será inexorável. A morfina do SNS, ou seja, os privados, criará um mercado paralelo ao SNS cada vez mais lucrativo para estes e custoso para nós. Os contribuintes pagarão a morfina que vai esconder as dores do SNS.
O argumento do Governo para privatizar serviços do SNS, ou seja, para administrar morfina, é que o doente está esgotado e por isso é necessário aumentar a dose. E isto quando os sucessivos governos, todos eles, estrangularam financeiramente o SNS, reduzindo o poder de compra dos seus profissionais e desinvestindo, fazendo com que o cancro alastrasse e que a morfina passasse a ser necessária. O Governo não está minimamente interessado em recuperar o SNS, tal como uma
farmacêutica não aposta na cura do doente, mas antes em mantê-lo vivo e a precisar do tratamento durante o maior período possível. Caso contrário, o Plano teria propostas para melhorar as condições de trabalho e melhores remunerações para os profissionais de saúde, dado serem estas as duas causas principais do descalabro a que temos assistido. Quem pode pensar que se consegue uma melhoria do SNS sem médicos e sem enfermeiros motivados?
E sem uma correção radical do cenário de uma multiplicidade de horários de trabalho que causam uma profunda desorganização dos serviços, dificultando a constituição de equipas e o debate multidisciplinar de casos clínicos? Sem recurso às melhores práticas médicas e formativas, a saída do SNS dos médicos mais experientes e qualificados para os grandes grupos privados de saúde ou para o estrangeiro será inevitável.
E sem se corrigir a distribuição desigual de médicos e de enfermeiros pelas diferentes regiões do país, e sem se reconhecer que os orçamentos do SNS têm sido cronicamente inferiores às necessidades, causando enormes dívidas a fornecedores privados, nada feito. O Plano não só não fala disto, como não fala das ineficiências e da desresponsabilização crónicas, nem da insuficiência gritantes dos investimentos previstos (menos de metade do previsto nos Orçamentos do SNS é executado). Consequentemente, também não fala da profunda degradação de instalações, de equipamentos, de tecnologias de saúde, de condições de trabalho, etc.
O Plano não passa de um penso rápido carregado de morfina para alguém a morrer com um cancro terminal! Acreditar que as listas de espera se irão reduzir recorrendo a “vouchers” telefónicos a partir de um “call center” do SNS24 faz parte da fantasia! Fantasia essa que se pretende de natureza maternal, quando se julga que a solução para as grávidas passará pelo seu encaminhamento através da linha SNS24. Só quem não conhecer o histórico da linha SNS24 e não souber andar e respirar ao mesmo tempo, é que pode acreditar que a dita cuja, agora com mais atribuições e novas prestações de serviços, vai funcionar agora melhor que anteriormente.
Milhares de portugueses continuarão sem médico de família e não é a contratação de psicólogos que vai esconder essa mancha negra. Ainda por cima, psicólogos que faltam até já em vários serviços, nomeadamente em escolas e no acompanhamento a cidadãos. Perante tudo isto, dou por mim a pensar que esses psicólogos seriam melhor aplicados a explicar-nos o inexplicável, ou seja, como o tratamento com morfina é melhor para o doente do que aquele que o evite. Ou, em alternativa, a decifrar os segredos da mente dos brilhantes pensadores de um Plano assente em drogas…

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Jorge Noutel

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