«O que mais me dói na pátria é não haver correspondência no espírito dos portugueses entre o seu passado e o seu presente», escrevia Miguel Torga, em 1977… No seu “Diário”, e na sequência destas notas, acrescentava que «olhamos os testemunhos da nossa identidade como trastes velhos, sem préstimo que apenas atravancam o quotidiano (…)».
Relembramos estas palavras a propósito da recente passagem – no passado sábado, 18 de maio – do 112º aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins; um número que evoca emergência e socorro… de auxílio, urgente, bem precisam os emblemáticos edifícios que restam daquela que foi uma das mais destacadas estruturas da luta contra a tuberculose, em Portugal.
A passagem da referida efeméride constitui mais um bom pretexto para voltarmos a sublinhar, nestas colunas, o estado de ruína deste património citadino, existente num espaço que em 2014 foi classificado como conjunto de interesse público.
A portaria da Secretaria de Estado da Cultura, publicada em janeiro desse ano, referia que esta classificação se baseava em critérios «relativos ao caráter matricial do bem, ao génio do respetivo criador», bem como «ao seu interesse como testemunho notável de vivências ou factos históricos».
Aludia ainda ao valor estético, técnico e sublinhando que «o antigo Sanatório Sousa Martins, projetado no início do século XX por Raul Lino e instituído na Guarda, cujo clima favoreceria a cura de doenças respiratórias graves, foi a primeira instituição criada de raiz para a assistência a doentes com tuberculose, tendo-se constituído como um complexo hospitalar de referência nas áreas social, científica e arquitetónica» …
Os pavilhões Rainha D. Amélia e D. António de Lencastre continuam a ser uma imagem lancinante do desleixo continuado das entidades oficiais ou da incapacidade reivindicativa, das mesmas e dos guardenses, para contrariarem o caminho da ruína e destruição conducente a «um túmulo de memória».
Uma atitude tanto mais criticável quanto o Sanatório foi uma instituição que marcou – temos repetido esta nota em inúmeras ocasiões – o desenvolvimento da cidade durante a primeira metade do passado século. «Voltarmo-nos para o passado – dizia Vitorino Magalhães Godinho – destina-se, em primeiro lugar, a enriquecer a nossa experiência, enriquecê-la em contacto com as múltiplas e variadíssimas experiências de todos os homens de todos os tempos e lugares».
Lembrar a data de 18 de maio de 1907 não é, contrariamente aquilo que alguns pensam, um mero exercício de «comemorativismo ritualista em que tantas vezes se refugia a incapacidade de enfrentar os problemas da nossa época» (V. Magalhães Godinho); é mais um alerta para que não se despreze a história da Guarda.
A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório ocorreu a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia, que materializou nesta instituição de tratamento da tuberculose a homenagem a Sousa Martins, atribuindo-lhe o nome daquele clínico; cuja ação e dinamismo ela tinha já evocado numa intervenção pública, no seio da Associação Nacional aos Tuberculosos, realizada em 1889.
«Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (…), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (…)». Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural da referida estância de saúde.
O Sanatório foi, durante décadas, o grande cartaz de propaganda da Guarda, “a cidade da saúde”; hoje, o que resta, está com péssimo prognóstico e certamente nem os melhores “ares” das boas intenções vão travar a “doença”, por enquanto ainda com cura… Na Guarda do património e da cultura o estado de degradação dos Pavilhões D. António de Lencastre e Rainha D. Amélia exige e merece medidas concretas e eficazes de defesa e salvaguarda, pois fazem parte da história da saúde em Portugal.
Esperemos que o número de emergência, 112, associado a este aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins desencadeie decisões e medidas, a par da uma intervenção cívica esclarecida e reivindicativa!…