A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Como um relâmpago a rasgar o ar quente antes da tempestade, ou a faísca que cai imprecisa na esquina de uma casa habitada. O desmoronar de um baralho de cartas, lâminas roídas pela ferrugem de um tempo que ninguém quis acolher. A tempestade inflexível no olhar desmedido de uma criança. A casa sem paredes, escancarada ao gelo e à pilhagem da noite. A inexistência de luz. O negrume, alcatrão abrasado a colar-se aos pés.
A cicatriz escondida numa caixa de marfim. A cicatriz que irrompe por dentro da caixa, que detona o marfim e põe a nu uma infecção virulenta. As pessoas que se afastam e o pavor de uma nova peste. A usual exclusão de quem se recolhe na plasticidade tranquila de vidas que nada possuem.
A agrura imprudente dos animais enjaulados. O som penetrante do clamor de um fogo que se anuncia ao longe. E os homens incapazes de mudar o curso do dia, de provocar novos sóis ou intimar luas antigas. Metem as mãos nos bolsos à procura da navalha obsoleta, mas só o cotão dos séculos exala o odor de uma humidade bafienta.
Há quem nunca tenha aberto uma nesga da caixa de Pandora. Desconhecem os males do mundo que a curiosidade não matou. Da dor nada sabem e, em jeito de repulsa, tornam-se cegos. Como se a dor se expulsasse para uma gruta obscura inexorável. Mas a dor é um horizonte obstinado dentro de nós. Um colar de setas certeiras que se vão incrustando na pele. Cada uma com uma incumbência determinada, sabendo de cor o alvo a atingir.
A voz alucina e o corpo resiste aos queixumes. As palavras, hesitantes, emaranham-se em simples monossílabos que esmorecem até ao emudecimento.
Era tarde ou noite. Já não recorda. Vestiu o primeiro casaco que encontrou, pegou num velho livro e saiu de casa. A dor era uma onda repleta de terminações nervosas que o obrigava a balançar servindo-se do seu corpo como de um barco. Procurava o mar e o sal para poder abrandar o sofrimento.
Passou pelo túnel que se seguia ao candeeiro de luz amarelada. A sombra do seu corpo aparentava a de um gigante acocorado. A dor era agora uma medusa translúcida disseminada no seu olhar. Entrou. Sentou-se na cadeira de sempre, no bar de há anos. Ensaiou uma primeira leitura para cair, de imediato, no logro de uma peregrinação. Esquecer-se de si poderia trazer-lhe de volta o perfume do âmbar ou o azul anil com que tingia as mãos.
Uma estranheza apodera-se da sua pressão sistólica até à dormência das impressões digitais. A presença daquela pessoa, na mesa ao lado, era quase a sombra do seu ser. Aquele gesto de abandono de si. O copo de vinho de costas voltadas. A sombra no olhar a beber em pequenos goles a ferocidade das cores das paredes. O casaco, esponja de muitos males, sorvedouro de alegrias.
Continua sem recordar se aquele dia era tarde ou noite, mas garante serem ambos a personagem secundária do livro que estava a ler.
A esperança ficara prisioneira daquela caixa que arriscara espiar. Ignorava o que lhe reservava o enredo do livro, ou o da vida, mas pesava a suspeita da esperança poder coexistir com a dor.

Sobre o autor

Maria Afonso

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