Entrevista

«Gostaria muito que o futuro Governo, fosse qual fosse, continuasse a ter o interior no Conselho de Ministros»

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Escrito por Efigénia Marques

Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

P – O que recorda da sua infância, entre Angola e o Poço do Canto, no concelho da Mêda?
R – Foi o início de uma vida muito desafiante porque recordo, provavelmente por memórias que a minha mãe partilha, que quando regressámos as duas coisas que mais estranhei foi ver animais na rua e as casas com lareira. Conta a minha mãe que só passado um ano de cá estar é que consegui entrar nalgumas casas. Como sabe, na Bei00ra Alta entra-se na maior parte das casas pela cozinha, que é dominada pela lareira. Isso era para mim algo escuro e diferente.

P – Como foi esse choque de passar de uma terra quente, como é Cabinda, para as terras frias como as do concelho da Mêda?
R – As crianças são felizes desde que estejam com os pais, têm uma extraordinária capacidade de adaptação e não têm essa perceção da dificuldade do Inverno. Não recordo essa vinda com qualquer tipo de sentimento negativo… Era muito feliz porque tínhamos muita liberdade, vivíamos e brincávamos na rua. Recordo-me da minha mãe me chamar às dez da noite e eu ia muito contrariada para casa. Éramos muito acarinhados – lembro-me de chegarmos à escola molhados e a nossa professora era extremamente carinhosa porque nos ajudava com aquecedores, com tudo, a termos o maior conforto… Foi uma infância muito, muito, feliz… Comia cerejas, o meu fruto preferido, em cima da cerejeira… Estas memórias e esta capacidade de nos adaptarmos a uma nova casa, escola e ambiente – porque passado pouco tempo fomos viver para a Mêda – só me ajudou durante a vida, pois também mudei muitas vezes de vila, de cidade… Até hoje já vivi em mais de 20 casas. Com 51 anos, relativizamos muito estas mudanças e valorizamos aquilo que, de facto, é importante. Para mim, foi voltar às origens, conhecer os meus avós, com quem mantive uma grande ligação, e a vida do campo. De alguém que não conhecia e tinha medo dos animais domésticos passei a gostar deles, a acompanhar e a perceber de onde vinham as coisas que comíamos.

P – Estudou até aos 15 anos na Mêda e depois veio para a Guarda…
R – Essa foi, talvez, a mudança que mais me custou. Era muito ligada à minha mãe e à minha irmã – nessa altura, o meu pai, que era militar e tinha ficado em Angola, já tinha regressado, primeiro para Lisboa e depois para a Guarda. Com 15 anos era muito jovem e foi difícil, fiquei sozinha, tinha que gerir o meu orçamento e ser completamente autónoma… Continuei filha da mamã – e ainda sou. Aos fins de semana regressava à Mêda e era sempre um drama silencioso quando voltava para a Guarda, mas não o manifestava para não deixar a minha mãe triste. A adaptação à Guarda foi difícil porque na altura era uma terra bastante fechada, mas, posteriormente, o ambiente de escola foi fantástico, com métodos de trabalho e níveis de exigência que me ajudaram ao longo da vida. Vim para um liceu muito bom, era muito boa aluna na Mêda, mas para acompanhar os bons alunos na Guarda tive que fazer um esforço maior. Havia excelentes professores e aulas muito participadas, em que os professores eram muito nossos amigos e com um nível de exigência muito grande. Foi esse nível de qualidade e exigência que me ajudou nos meus estudos posteriores. Quando entrei para a Faculdade de Economia, em Coimbra, não tive qualquer problema em adaptar-me às exigências do curso porque ia com métodos de trabalho e habituada a níveis de exigência muito grandes.

P – Normalmente não fala das amizades que criou. Refere alguma relação de amizade com a Madalena e pouco mais…
R – Porque tinha pouco tempo para amizades, o que tinha dedicava-o sobretudo a estudar e quando tinha tempo livre regressava à Mêda. No fundo, pouco vivi a cidade da Guarda, vivi intensamente a escola [Secundária Afonso de Albuquerque], dediquei esses anos ao estudo e mal tinha um tempinho livre lá ia eu na “Viúva Carneiro” para casa, onde tinha aquela tranquilidade para me preparar para os testes mais rigorosos. Na Guarda foram sobretudo anos de trabalho muito intenso, de muito esforço. Trabalhei e estudei muito durante toda a minha vida, mas também tiro muito prazer do trabalho, do esforço que faço e do empenho que coloco em todas as missões a que me entrego. Também não sei fazer as coisas pela metade… Muitas das minhas amigas não vieram estudar, ficaram na Mêda e, portanto, foi preciso um esforço grande para perceber que se quisesse ter um futuro diferente tinha que trabalhar. Esse período marcou-me muito, foi quando decidi que queria seguir Economia e quando, de facto, percebi que método de trabalho e disciplina são tudo. A Guarda tinha na altura uns nevões maravilhosos e recordo que tive algumas manhãs felizes quando ouvia a Rádio Altitude dizer que não tínhamos aulas, mas o meu primeiro pensamento era que assim teria mais tempo para estudar. Depois a universidade foi muito fácil porque levava método de trabalho, além disso trabalhei nas férias, num restaurante, até ao 4º ano e adorava, inclusive cheguei a ajudar também na contabilidade. Após o 4º ano dediquei-me exclusivamente aos estudos, não por necessidade, mas porque retirava também muito prazer no facto de ter várias atividades e sentia que esse trabalho não prejudicava os meus estudos, nem as minhas notas, foi muito enriquecedor.

P – Como recorda as aldeias da Beira Alta e Alto Douro e a Guarda até ir para Coimbra?
R – Eram terras muito fechadas, com um Inverno muito rigoroso… Estes territórios sofreram uma transformação pela positiva muito grande. Mas recordo também Verões maravilhosos, as noites de calor e sobretudo a Primavera, quando tínhamos a possibilidade de ir às cerejas durante o recreio da escola. Às vezes, e por conta disso, levávamos uns puxões de orelhas… Adorava também as vindimas, ir ao mercado com a minha mãe, coisa que deixei de fazer, ir à igreja e ficarmos no terreiro na conversa porque, na Mêda, também pertencia a um grupo católico, isso também foi muito importante para a minha formação. Tínhamos aquilo que chamávamos o “Patronato”, para onde ia quando saía da escola e onde aprendi a bordar, a cozinhar, a fazer aquilo que as freiras nos ensinavam depois de fazermos os trabalhos de casa. Apesar de ter nascido em Angola, sinto que é na Mêda, na Guarda, que tenho as minhas raízes, a minha casa, e que foram esses anos aqui passados que marcaram muito a minha forma de ser e de estar na vida.

P – Quando foi para Coimbra tomou a decisão de não regressar a estas terras, afirmando “eu aqui não volto!”. É verdade?
R – É. Costumo dizer que passamos metade da vida a querer sair de onde somos e a outra metade a querer regressar. Neste momento já estou na segunda. É normal quando somos jovens ambicionarmos conhecer terras novas, profissões que nem existem de onde vimos, mas depois, com a maturidade, percebemos o valor real das coisas, das nossas raízes, porque começamos a dar outra importância às coisas, ao sossego deste território, à qualidade de vida… Passamos a não ter paciência pelas horas no trânsito ou com outros problemas dos grandes centros urbanos. E também porque já demonstrámos a nós próprios que conseguimos e que, afinal, somos felizes com coisas simples.

P – Com uma carreira notável na administração pública, foi ao mesmo tempo professora da Universidade de Coimbra, creio que ainda é, mas sempre com o foco numa área muito específica, a do desenvolvimento regional. O Ministério da Coesão Territorial é “a sua praia”?
R – Sinto-me muito à vontade porque sempre estudei e trabalhei nestas questões do planeamento e do desenvolvimento regional, aliás, fui professora de uma disciplina de Economia Regional durante mais de dez anos. Quando acabei o curso fui trabalhar para uma empresa de auditoria, no Porto, e depois regressei a Coimbra e entrei na Faculdade de Economia – da qual ainda sou professora com muito gosto e orgulho. Fiz toda a carreira académica, mas sempre trabalhei com empresas ou municípios fora da faculdade, que ficava com uma parte do que recebia nesses contratos. Percebia que era melhor docente trabalhando simultaneamente, até porque a realidade muda constantemente e isso obriga-nos a atualizar as nossas matérias. No final dos anos 90 fiz o doutoramento – e foram anos muito felizes – e na altura a ideia dominante era que a indústria ia desaparecer do Ocidente e tudo o que fosse mão-de-obra também iria desaparecer, nomeadamente os setores tradicionais do têxtil, do calçado ou dos moldes. A minha tese era no sentido contrário, que iríamos manter esses setores e que tão importante como a inovação tecnológica era a inovação organizacional e a qualificação das pessoas. Felizmente, tive razão porque não só os nossos setores tradicionais são dos mais exportadores, e sobreviveram, como também são dos mais inovadores em termos tecnológicos. Dos cinco anos de doutoramento passei três nas empresas, conheci centenas de empresas de calçado, têxteis e de moldes, os respetivos centros tecnológicos, as suas associações empresariais. Isto mudou muito a seguir, foi outro marco importante na minha vida, mudou muito a maneira de dar aulas e a postura de estar na vida profissional. Decidi que nunca mais abandonaria este trabalho com a comunidade. Após concluir o doutoramento fui convidada para ser vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) e continuei a dar aulas, embora com menor carga horária. Fui vice-presidente durante dois anos, fui vogal da administração do Programa Regional do Centro e depois fui presidente da CCDRC. Neste período nunca deixei de dar aulas, já mais concentradas nas pós-graduações, mestrados e doutoramentos, era complicado acumular, mas era uma lufada de ar fresco. Eram alunos mais exigentes com quem aprendia muito e a quem procurava transmitir os conhecimentos e a experiência que tinha no domínio do planeamento e desenvolvimento regional. O trabalho na CCDR deu-me uma grande experiência técnica e também política muito importante porque é uma instituição que, além de gerir os fundos europeus regionais, tem também como missão o desenvolvimento regional.

P – Em 2017, quando era presidente da CCDRC, deu-se a tragédia dos incêndios na região. Teve que arregaçar as mangas, foi aí que percebeu, uma vez mais, o regresso às origens e que o mundo rural continua a ser muito pobre?
R – Sim. Tivemos os incêndios de junho, que se concentraram em Pedrógão Grande e onde houve fatalidades terríveis, mas depois em outubro desse ano outro incêndio muito grande afetou 50 concelhos da região Centro. Lidar com a dimensão dessa tragédia foi avassalador, tivemos momentos em que sentíamos que todos juntos não conseguíamos dar resposta. Em Pedrógão, a decisão da reconstrução foi um modelo mais centralizado em apoios recebidos e donativos, com a responsabilidade da Segurança Social. A CCDR esteve mais envolvida, de facto, nos incêndios de outubro, aí os apoios para a reconstrução das casas vieram do Orçamento de Estado. Nos incêndios de Pedrógão arderam cerca de 260 habitações permanentes, em outubro estamos a falar de quase mil casas e era a CCDR que geria as empreitadas por concelhos. Portanto, foi um modelo completamente diferente para ser mais rápido. Mas foi algo tão grandioso que não me recordo de ter um fim de semana durante dois anos ou de não ter um pensamento que não fosse a missão de entregar estas habitações às pessoas. Hoje, olhando para trás, podemos dizer que poderíamos ter feito diferente, melhor, mas tenho a consciência que entre a CCDR e as autarquias, cujas equipas foram preciosas, fizemos um trabalho ciclópico em pouco tempo. Tinha uma equipa na CCDR que não ultrapassava as 10 pessoas, cujos “braços” no terreno eram as autarquias, mas eu começava muitos sábados às 8 da manhã em Oliveira do Hospital e terminava na Pampilhosa da Serra à uma ou duas da manhã.

P – Tem a noção que, apesar de todas essas medidas e esforço, esse foi o “último tempo” desta região porque desde então o índice do despovoamento passou a ser mais intenso ainda, porque, à hora da verdade, hoje ninguém quer ficar nas suas aldeias.
R – Não sei se é mesmo assim porque os últimos Censos dão perda de população em todo o território. Temos que olhar para duas realidades: o saldo natural, que é claramente negativo, e o saldo migratório, que é positivo, por exemplo, nos distritos da Guarda ou Castelo Branco. Ou seja, vieram viver para estes territórios mais pessoas do que aquelas que saíram. Apesar disto perdemos residentes porque somos uma população envelhecida…

P – Então quando ouvimos os pais a lamentarem-se porque os filhos vão estudar para o litoral e não regressam não será bem assim?
R – Não, é verdade, mas também é assim por opção e se calhar deve ser assim porque é muito importante que os jovens tenham mundo. Nestes últimos dois anos houve essa tendência de termos saldos migratórios positivos no distrito da Guarda, só que não são suficientes para compensar a perda do saldo natural, ou seja, a diferença entre os que morrem e os que nascem. Isto significa que estamos a conseguir atrair pessoas e essa tendência reforçou-se nos últimos dois anos fruto da pandemia e das novas tecnologias porque estes territórios foram muito procurados por terem melhor qualidade de vida, custo de vida mais baixo, onde podemos ter horários de trabalho mais flexíveis, conciliar melhor a vida familiar e profissional e trabalhar daqui para o mundo. Quando saí da Mêda o interior já estava a perder população, portanto isto não é algo recente. Nestes últimos 50 anos há períodos de maior perda de população do que recentemente, mas quero frisar que estes territórios revelam-se cada vez mais atrativos para novos habitantes e até para o regresso de quem saiu. A informação que nos dão as operadoras de telecomunicações é que o número de ligações de Internet que fizeram aumentou exponencialmente durante a pandemia, isso é um indicador de novos habitantes nestes territórios, muitos deles ainda não recenseados.

P – A CIM das Beiras e Serra da Estrela fez uma opção de defender o 5G como o grande projeto para este território. É essa também a sua opinião, que o caminho é por aí?
R – A CIMBSE mostrou uma grande visão e grande capacidade de olhar as tendências que hoje temos, escolheu a conectividade digital como a área prioritária em todos os domínios, na agricultura, na habitação, na área social ou na saúde. Isso significa que os seus líderes acreditam que este é o momento de fazer os investimentos que permitam às pessoas ficar e valorizar estes territórios porque estamos a ter procura. Aliás, de acordo com o setor imobiliário, nunca houve tanta procura de casas nestes territórios, apesar disso é certo que não voltaremos a recuperar a população do passado.

P – Ficou colada, de certa forma, a um artigo de opinião que escreveu no “Público”, em que dizia que tínhamos que gerir o declínio e deixar para trás alguns territórios que não conseguiam inverter essa tendência. Quer esclarecer esta posição?
R – Sou uma pessoa realista e quando se fala de gerir o declínio já é uma teoria económica do século passado, a própria Comissão Europeia tem vários textos sobre isso e temos experiências na Alemanha e noutros países do que é a gestão do declínio. Trata-se de procurar mudar os modelos de desenvolvimento dos nossos territórios e dizer de forma realista que não voltamos a ter a mesma população. Muito provavelmente a tendência é que as populações se concentrem nas sedes de concelho, nas pequenas cidades, onde existem os serviços e têm qualidade de vida.

P – Mas entretanto nos nossos meios fecharam uma série de serviços, afastando as pessoas...
R – Voltámos a procurar que fossem reabertos, nomeadamente com as Lojas e os Espaços do Cidadão, que prestam serviços da administração pública e fiscal por via eletrónica, daí a importância da literacia digital. Não são os serviços públicos que trazem população para estes territórios, o que temos que garantir é que as pessoas têm acesso a eles. Não vamos ter um centro de saúde em cada localidade, as pessoas têm é que ter acesso ao serviço de saúde e hoje até vai, muitas das vezes, através de uma viatura móvel com os profissionais. Com as tecnologias e a nova forma aceder, temos que garantir que uma aldeia, mesmo que tenha dez habitantes, tem acesso a esses serviços. Obviamente que os serviços públicos são importantes, mas não são eles que trazem as pessoas para cá. O que atrai e fixa pessoas é a possibilidade de terem carreiras profissionais, de criarem uma família com condições. Eu não diria que o interior tem falta de serviços públicos, obviamente que não temos um centro de saúde em todas as aldeias, não temos um tribunal ou um hospital em todas as vilas porque não seria racional. A própria eficiência da prestação dos serviços públicos exige alguma escala, mas não estou com isto a diminuir a importância de existirem serviços públicos. O que traz e fixa população são as empresas.

P – Sabemos que os milhões do PRR não irão mudar o país de um dia para o outro, mas quais serão as grandes marcas que vamos ter nesta região?
R – Pode contar com apoios na área da habitação. O Plano de Recuperação e Resiliência tem uma “gaveta” com elevados recursos para esta área e está nas mãos dos nossos autarcas fazerem uma estratégia de habitação que inclua habitação social e a custos acessíveis. Cada vez mais nos é reportado, nomeadamente no interior, o custo crescente da habitação e para poder atrair investimento começamos a ter a necessidade de ter um parque habitacional para que os quadros que vêm trabalhar para essas empresas possam ter onde residir. O aviso tem uma condição, a dos apoios serem distribuídos pelo país, ou seja, tem um critério de coesão territorial, caso contrário só as candidaturas das áreas metropolitanas poderiam absorver todas as verbas do PRR. Portanto, a existência do Ministério da Coesão Territorial também se sente aqui. Na área da Saúde, em todas as regiões está a ser fechada uma lista, por exemplo, de cuidados de saúde primários, que envolve as CCDR, as ARS e as autarquias. A ideia é requalificar centros de saúde ou criar novos que permitam fechar a rede. Também estão abertos há algum tempo avisos de concursos para equipamentos sociais aos quais as IPSS podem candidatar-se, bem como a apoios para unidades de cuidados continuados….

P – Estamos a falar de economia social num tempo em que a Europa descobriu que tinha que se reindustrializar…
R – Há também um pacote muito grande para as agendas mobilizadoras e as candidaturas ultrapassaram, e muito, as verbas disponíveis. Tivemos muitas e boas candidaturas. Estas agendas mobilizadoras são consórcios entre a academia, as empresas, as associações e os municípios e a primeira fase já ficou fechada, agora vai abrir um novo aviso de concurso para que as candidaturas que passaram à segunda fase possam ser selecionadas. Se olharmos para o mapa destas agendas mobilizadoras vemos manchas escuras no interior porque pusemos também nestes avisos um critério de coesão territorial. E vemos uma mancha grande sobretudo onde temos instituições de ensino superior e laboratórios colaborativos, como aqui nas Beiras, em Bragança e no Alentejo. Isto, em áreas que há cinco ou dez anos não imaginávamos nos territórios do interior, por exemplo, a aeronáutica no Alentejo, as tecnologias da informação e comunicação nas Beiras, a eletromecânica e a agricultura de precisão. O PRR teve uma procura extraordinária por parte das empresas e o primeiro-ministro garantiu que todos os projetos com mérito teriam financiamento. Como sabem, temos a possibilidade de recorrer a financiamento para reforçar estes projetos no âmbito do PRR, pelo que tenho a certeza que o primeiro-ministro não deixará de cumprir a promessa. Na Beira Interior temos várias agendas mobilizadoras, só a Câmara do Fundão participa em duas, ora isso era impensável há dez anos. Obviamente que estamos a falar de apoios para empresas de alguma dimensão, mas não vão faltar porque estamos agora a fechar o Portugal 2020 e iniciaremos no próximo ano o quadro comunitário seguinte, o Portugal 2030, onde 40 por cento das verbas são para competitividade e inovação.

P – A “menina dos olhos” de Ana Abrunhosa é o UBImedical, na Covilhã. É com projetos assim que quer mudar o interior?
R – É, mas também com o Parkurbis, na Covilhã, o CEIA e o CATA, em Castelo Branco, e com os projetos que estamos a trabalhar na Guarda. Quando assumi este dossier dizia muitas vezes que o desenvolvimento destes territórios se faz, sobretudo, com pessoas qualificadas, mas faz-se valorizando os territórios e as atividades aqui desenvolvidas, das mais tradicionais às mais tecnológicas.

E a única forma de isso acontecer é com conhecimento científico, daí a importância de termos instituições de ensino superior dinâmicas, associações empresariais que ajudem a fazer a ponte entre as empresas e a academia e haver nas empresas pessoas qualificadas que saibam fazer esta comunicação e ponte.

 

P – O Politécnico da Guarda terá que ser a âncora do desenvolvimento do distrito?
R – Acredito que já é e vai ser cada vez mais. O Instituto Politécnico da Guarda tem feito um esforço muito grande, nomeadamente com a criação da pós-graduação em logística. Agora preparou uma candidatura a um laboratório colaborativo também ligado à logística porque se há área que faz sentido na Guarda é uma plataforma logística ou um porto seco, mas que depois, simultaneamente, tenhamos profissionais que trabalhem nessas áreas e ninguém melhor que o Politécnico, a trabalhar com as empresas deste setor, para garantir que temos profissionais com competências nestas áreas e que até formamos profissionais para outros territórios do país e para o mundo. Por isso, acredito que o IPG, em parceria com outros politécnicos e universidades, e até no âmbito dos projetos da CIMBSE – caso da conectividade digital – vai ser cada vez mais motor de desenvolvimento. Dos apoios do Portugal 2020 para a ciência e as instituições de ensino superior do interior, 80 por cento foram concedidos nestes últimos dois anos. Ou seja, quando criámos este ministério a primeira coisa que fizemos foi procurar financiar as instituições de ensino superior, melhorando os seus laboratórios, ajudando-as nos seus projetos de investigação, e fizemos o nunca tínhamos feito: abrimos avisos dedicados só para os territórios do interior, para quem cá está ou para quem quer investir aqui, para projetos entre empresas e a academia, para projetos de investigação e desenvolvimento de politécnicos e universidades do interior e também para apoiar a contratação de recursos humanos altamente qualificados. Fizemos tudo isso em plena pandemia, tivemos uma procura extraordinária e, portanto, o que queremos continuar a fazer é consolidar estas medidas dedicadas aos territórios do interior. Por exemplo, no apoio ao investimento tivemos a linha aberta todo o ano para que as empresas pudessem candidatar-se a tempo, fizemos medidas dedicadas, em que as empresas do interior sabiam que estes apoios eram para elas, tal como os politécnicos e as universidades, medidas integradas: apoio ao investimento, à contratação, à cooperação empresas-academia, à mobilidade para o interior.

P – Entretanto, há quem defenda a mudança do mapa e dos critérios dos territórios de baixa densidade. Também concorda?
R – Concordo absolutamente. Não podemos ter dois terços do país considerados como interior num conceito económico e social, até porque para haver verdadeiramente medidas diferenciadoras temos que ter um território do interior menor e, portanto, defendo que o mapa deve ser revisto com critérios que meçam precisamente o que são as questões da interioridade. Hoje, temos territórios considerados do interior que não têm nada de interior. Estou a pensar, pela positiva, em Tondela, Nelas, ou outros municípios. E muito provavelmente temos outros territórios no litoral com caraterísticas de interioridade, que tem que ser um critério económico e social. Para fazermos uma verdadeira política de diferenciação positiva para estes territórios temos que rever de forma muito séria e corajosa o mapa porque, quando o fizermos, os territórios que saírem vão perder as medidas de majoração ou dedicadas ao interior. O Portugal 2030 é para todo o país, mas temos que tratar diferente o que é diferente e se estes territórios são mais frágeis temos que ter a coragem política de criar medidas especiais.

P – Foi candidata à Assembleia Municipal da Mêda pelo PSD, hoje é ministra e candidata a deputada pelo PS. É militante socialista ou ainda é independente?
R – Sou independente. Na Mêda, fui candidata como independente apoiando um amigo de infância, o Paulo Amaral, que concorria à Câmara, e redescobri a Mêda. Hoje, sendo ministra de um governo socialista não podia dizer que não a um desafio e a uma oportunidade de valorizar ainda mais o nosso interior. Portanto, sou, com grande orgulho, cabeça de lista do PS pelo distrito de Castelo Branco, mas como independente. Estou muito comprometida com essa candidatura e quero muito que o PS ganhe as eleições com estabilidade para fazer Governo.

P – Espera não só a vitória do PS, como, eventualmente, continuar a ser ministra, nomeadamente porque só teve metade do mandato para pôr em prática as medidas que preconiza?
R – É uma decisão que caberá ao primeiro-ministro…

P – Mas gostava?
R – Neste momento faço a gestão mês a mês. O que gostaria muito era que o futuro Governo, fosse qual fosse, continuasse a ter o interior no Conselho de Ministros e medidas de política pública especiais para estes territórios.

P – O título de uma entrevista recente era “A governante que faz 20 mil quilómetros por mês e tem sempre tempo para ouvir o país”. Sente-se retratada nesta expressão?
R – Sinto porque a pandemia traumatizou-me muito, mas não deixei de andar no terreno, com todas as cautelas. Não faço visitas de médico, passo horas nos territórios, as suficientes para ouvir os problemas, para discutir as soluções, para perceber as nossas gentes, as suas ambições e para criar laços de confiança.

Se há uma coisa que a política me ensinou é que a confiança é absolutamente fundamental porque quando digo a um autarca, a um dirigente associativo, a um empresário, que tem que confiar em mim tenho a certeza que ele sabe que farei tudo para resolver o seu problema dentro da legalidade. E outra coisa: melhor do que ninguém, é quem vive e trabalha nos territórios que sabe muitas das vezes as soluções para os problemas.

P – Vai defender a extinção das portagens nas antigas SCUT, como a A23 e A25, ou o assunto vai ficar pelo desconto?
R – Vou continuar a defender a redução das portagens e creio que o próximo Governo deve continuar a trabalhar nisso e ponderar seriamente a sua isenção.

P – Há quem diga, e se calhar não é excessivo, que António Costa dá mais ouvidos a Ana Abrunhosa do que a João Leão.
R – É verdade, aliás, as conquistas que fiz, nomeadamente da redução das portagens, não as teria conseguido se não tivesse o apoio do primeiro-ministro. O ministro das Finanças tem que zelar para que a nossa dívida não aumente, para que o orçamento seja equilibrado e para que qualquer redução que façamos seja sustentável para não voltarmos, mais à frente, a aumentar as portagens. Mas também não razão de queixa, o que defendo é que as portagens são verdadeiramente um custo de contexto para os territórios do interior – e para a A22 – e que qualquer Governo terá que ponderar a sua diminuição e também a sua extinção. Sempre, obviamente, com a restrição orçamental e que essas reduções sejam sustentáveis. Devo dizer que mesmo sem orçamento para 2022 as reduções que foram feitas vão manter-se e isso é algo que posso agradecer ao ministro das Finanças.

P – De Cabinda ao Poço do Canto, da Mêda à Guarda, de Coimbra a Lisboa, depois Castelo Branco, como gostaria de ser recordada enquanto ministra do Governo da nação?
R – Como a ministra que se entregou ao território e que deu voz ao interior, que levou o interior para o Conselho de Ministros, que, em qualquer política pública, levou o Governo a olhar de forma especial e a ter em atenção o interior e as suas gentes.

Luís Baptista-Martins

Sobre o autor

Efigénia Marques

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