Quando cheguei à Islândia de “Gente Independente”, de Halldór Laxness, fiquei com a sensação de que aquele lugar não poderia pertencer às coordenadas mundanas. Parte dele era feito de areia preta, a outra parte era camadas de liberdade que o tempo sedimentou em segredo. No mais jovem país do mundo (geologicamente falando), a natureza é selvagem e viva e talvez o caos tivesse de se soltar precisamente nessa beleza bravia, que dificilmente se deixa domesticar. Eles quebraram antes, eles protestaram antes, o governo caiu antes, o FMI foi chamado antes e hoje, 11 anos após a pior crise financeira da sua história, podemos perceber como as pessoas se organizaram para que o país adoptasse uma estratégia e, quando todos recomendavam que a Islândia fizesse zig, ela fez zag. Por isso, penso que para entrar nas profundezas deste livro tem de se perceber primeiro que, mesmo parecendo frágil, a Islândia é dona de forças extraordinárias.
Pelo menos, assim nos fazem crer Guðbjartur Jónsson de Casas de Verão (a personagem dominante deste livro) e seus filhos. Logo nas primeiras páginas, damos conta de que Bjartur é um ser obstinado que luta todos os dias pela sua independência, mas parece não estar preparado para os tempos que se avizinham e são os seus filhos que pincelam a Islândia de renovadas esperanças. Ásta Sóllilja (Ásta quer dizer “amor” e Sóllilja significa “lírio do sol”), apesar de estar confinada ao mundo restrito do pai, percebeu que, quando a luz do saber brilha, é-lhe permitido voar nas asas da poesia; Nonni (ou “pequeno Jón”) nasceu para descobrir os países mais distantes e sonha em cantar para o mundo inteiro; Gvendur sempre seguira o exemplo do pai, mas a dada altura acredita que “amadurecer é ter descoberto a América”; já Helgi tem uma inclinação para o oculto e acha ter visto Kólumkilli (o lendário feiticeiro que, juntamente com Gunnvör, assombra a vida dos habitantes desta terra).
Mas nem sempre conseguimos estar próximos dos dias primaveris, por isso existe também a alma esquerda de Ásta que, sem o colo do pai, não consegue encontrar abrigo; um Nonni que diz que o amor é “a coisa mais terrível entre todas”, um Gvendur que perde a América por um deslumbramento; e os ladrões do capitalismo que vêm contrariar o espírito antigo da nação de Bjartur, e, mesmo que o fantasma Kólumkilli não seja real, há quem faça questão de lembrar que a humanidade acredita no incrível e duvida do credível. Mas, afinal, quem cresce num campo aparentemente semeado de anátemas? Gente Independente é uma lição, que nos mostra a beleza que fica para lá de qualquer sonho desfeito. E se o Japão tem o kintsugi, a Islândia terá o ‘þetta reddast’, que significa “tudo vai dar certo”. Porém, a vida é implacável e a lua deveria ensinar-nos a sonhar para lá do seu brilho para que nos fosse dada a possibilidade de respirar a liberdade desse país, que permanece amante da juventude e da charneca.
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com