E se pudéssemos ser imortais? E se a nossa boca aprendesse a falar o amor de Bizet, sem percorrer as avenidas do desencontro? Adolfo Bioy Casares, ao escrever “A Invenção de Morel”, optou pelo enigma e não pela solução e há ecos borgianos espalhados por toda a parte. A história mostra-nos um homem condenado à prisão perpétua que, perante a sua situação deplorável, segue o conselho do italiano que vendia tapetes em Calcutá: «Para um perseguido, para si, não há senão um lugar no mundo, mas é um lugar onde se não vive. É uma ilha. (…) A ilha é o foco de uma doença ainda misteriosa, que mata de fora para dentro. Caem as unhas, o cabelo, a pele e os olhos secam, e o corpo vive oito, no máximo quinze dias».
O perseguido foge e, à medida que a história avança, compreendemos que Casares distorce os limites entre a realidade e a imaginação, atirando-nos primeiro para a nebulosidade da simulação e depois para a tontura do simulacro. Confesso que este não é um livro que gostaria de ter lido agora. Enquanto estive na faculdade, alguns professores e amigos aconselhavam leituras diversas. Nesse território de descoberta, deambulei por Jean Baudrillard, Pierre Lévy e Gilles Deleuze, mas nunca ninguém me apontou o caminho para “A Invenção de Morel”. Recordo-me de ficar fascinada com esse universo onde as fronteiras nunca são exatas e, ainda que busque incessantemente pela verdade, como saber onde começa o real e termina o sonho? Se somos cada vez mais invadidos por conteúdo fantasma, como medir a nossa percepção da realidade? Adolfo Bioy Casares não responde a nenhuma destas questões, deixa-nos à solta com o protagonista e os seus pensamentos: «(creio que perdemos a imortalidade porque a resistência à morte não evoluiu; seus aperfeiçoamentos insistem na primeira ideia, rudimentar: manter vivo o corpo inteiro. Só se deveria buscar a conservação daquilo que interessa à consciência)».
O fugitivo escreve, sob a forma de um diário íntimo, e mostra-nos que não é a dura rotina da busca dos meios de sobrevivência que o perturba, mas o sobressalto de vir a ser descoberto, temor que se aguça quando descobre a presença de outras pessoas, ocupando e animando as instalações outrora abandonadas. Dentro desse grupo encontra-se uma mulher de nome Faustine e de repente entra-se no campo das contradições, onde existe esse permanente desejo de aproximação e a necessidade de não se fazer notar: «A mulher, com a sua sensualidade de cigana e com o lenço colorido grande demais, parece-me ridícula. No entanto, sinto, talvez com um pouco de humor, que se pudesse ser olhado um instante por ela, falar com ela um instante, receberia ao mesmo tempo o socorro que o homem tem nos amigos, nas noivas e nos que são do seu próprio sangue». O fugitivo não tem expectativas, mas esta mulher deu-lhe esperanças e criam-se realidades paralelas entre a mulher que é observada e não observa, e o homem que espia: «Então, para adiar o momento de lhe falar, descobri uma antiga lei psicológica. Convinha-me falar de um lugar alto, que me permitisse olhar de cima. Esta maior elevação material compensaria, em parte, as minhas inferioridades».
Mais tarde, as anotações encontradas pela personagem-narrador revelam-nos que aquelas pessoas não são pessoas, mas sim imagens projectadas por uma máquina. Mas falta algo nessas imagens e, embora pareça estar a dar demasiados pormenores sobre o enredo, não vou escrever sobre essa falta porque para mim “A Invenção de Morel”, mais do que uma história sobre invenções, é uma história sobre essa ausência. O objectivo de Casares era oferecer uma realidade perpétua, mas, no fim de contas, talvez só a arte e o amor nos podem salvar.
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com