CARLOS ALBERTO PIRES DE BRITO
Presidente da direcção do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda Idade: 69 anos Naturalidade: Guarda Missão de VIDA: Lutar contra o alcoolismo Currículo (resumido): Alcoólico tratado há 42 anos; Após a sua recuperação, em 1980, começou a difícil tarefa de sensibilizar e motivar ao tratamento amigos, conhecidos e desconhecidos, tornando assim a sua vida numa missão: Lutar em prol de pessoas com problemas ligados ao abuso e dependência de álcool e das suas famílias; Seguindo o lema “Em ajuda aos alcoólicos do distrito”, tem tido um papel interventivo na área da prevenção primária, sobretudo junto dos mais jovens, através da realização e dinamização de sessões de esclarecimento.«“Hipotequei” muitas vezes a minha vida para que a “minha” obra não morresse»
P – Está há 42 anos em abstinência, como têm sido estes anos e quais foram as principais dificuldades?
R – As minhas… As normais de qualquer ser humano! Tenho muito orgulho em ser um alcoólico tratado e ter abraçado esta causa, tenho como missão de vida ajudar os outros. Em relação ao Centro de Alcoólicos Recuperados da Guarda (CARG) foram muitas as dificuldades! Na fundação da instituição possuía apenas 40.000$00, que serviriam para pagar dois meses de renda! Um grande risco… Muitas vezes se pediram livranças ao banco (que tinham de ser assinadas por mim e pela minha esposa, bem como pelo tesoureiro e pela sua esposa) para o CARG poder continuar. “Hipotequei” muitas vezes a minha vida para que a “minha” obra não morresse! Hoje, felizmente, a situação é diferente porque, gradualmente, o nosso trabalho foi sendo reconhecido enquanto IPSS, que presta um serviço gratuito.
P – Quantas pessoas já apoiou o Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda e quantas estão recuperadas?
R – Após o meu tratamento, as pessoas, sobretudo familiares, batiam à minha porta a pedir ajuda para uma situação de alcoolismo de um marido, de um familiar, de um amigo. Entre 1980-1983, ajudei e sensibilizei 78 pessoas que encaminhei para o Centro de Recuperação de Alcoólicos de Coimbra (hoje Unidade de Alcoologia Maria Lucília Mercês de Mello de Coimbra – UAC). Era difícil conciliar a minha atividade profissional e a minha vida pessoal com esta tarefa, quase sempre muito árdua. Senti que precisava de uma estrutura sólida para poder continuar. Juntei algumas pessoas, quase todos alcoólicos tratados e ajudados por mim, que quiseram assumir o risco e, a 7 de dezembro de 1983, nascia o Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda, um projeto pioneiro a nível nacional. Quantas pessoas? Atrás de um alcoólico há sempre muitas outras vidas, uma família que sofre. Por isso, ajudámos milhares de pessoas, seguramente. Doentes alcoólicos? Mais de 2.000, mas estes números estão longe de quantificar o nosso trabalho. Um internamento pode significar dezenas de quilómetros percorridos, inúmeras intervenções, incontáveis telefonemas. Cada caso é um caso, uma história de vida!
P – Como está o Centro atualmente, quais são as principais dificuldades?
R – Foi longo o percurso, foi sinuoso, mas podemos dizer que somos uma referência nacional. Somos falados e procurados porque fazemos diferente. Não somos Alcoólicos Anónimos (não tenho nada contra os AA), mas somos alcoólicos recuperados, pessoas que dão a cara, que assumem o seu alcoolismo e isso faz toda a diferença. Digo sempre que um alcoólico que não assume a sua doença é um alcoólico recaído… Raramente me engano, infelizmente. Diria que a principal dificuldade é salvar vidas, sem dúvida! O doente alcoólico é difícil. Mas para isso estamos cá e não vamos desistir. A par disso, as dificuldades são sobretudo financeiras porque todo o trabalho é gratuito. Contudo, hoje já temos alguns apoios fixos que nos permitem continuar. O CARG é apoiado financeiramente pela Segurança Social, pela Câmara da Guarda, pela ULS Guarda, a par de alguns apoios mais pontuais, mas que agradecemos muito. Toda a ajuda é bem-vinda! Realço ainda o imprescindível apoio da Unidade de Alcoologia Maria Lucília Mercês de Mello, de Coimbra, que recebe os nossos doentes, sempre acreditou no nosso trabalho e nos apoiou, desde a primeira hora, ao nível de internamentos e consultas.
P – O alcoolismo ainda é um problema grave da sociedade portuguesa, porquê?
R – Sem dúvida! O álcool é socialmente aceite. Ontem, o alcoolismo era tabu, para além de não ser reconhecido como uma doença pela maior parte das pessoas. O bêbado era o agricultor, o trolha, o coitadinho… que bebia porque queria. Era uma vergonha social! Hoje, o alcoolismo é considerado uma doença que atinge também o advogado, o professor, o estudante… que atinge todos da mesma forma, que destrói vidas! Sem falsa modéstia, penso que o CARG contribuiu muito para esta desmistificação do alcoolismo, para as pessoas perceberem que o alcoolismo é uma doença crónica, reconhecida pela OMS. Uma doença para toda a vida que só pode ser “controlada” com a abstinência do doente, para sempre. O que mais me preocupa atualmente são os jovens que consomem cada vez mais! Já não é o vinho o mau da fita, mas o “shot”, que se tornou o rei da festa. São as bebidas brancas. Isso explica a alcoolização mais rápida. Antes, um processo de alcoolização de alguém que consumisse sobretudo vinho demorava cerca de 20 anos. Hoje, é muito mais rápida, em 5, 10 anos “criamos” um alcoólico! É importante realçar que a alcoolização é mais rápida na mulher do que no homem devido às suas características corporais diferentes. É preocupante, e a prevenção é fundamental. É importante que os pais deixem de se preocupar apenas com a droga e se preocupem também – arrisco-me a dizer, sobretudo – com o álcool. Temos de consciencializar! Fazer perceber que dar um copo a um miúdo antes dos 18 anos não é torná-lo um homem (como muitas vezes ouvi da boca de pais), é torná-lo um potencial alcoólico no futuro. Por isso, a prevenção primária sempre foi uma prioridade no CARG. Somos cada vez mais solicitados para fazer sessões de esclarecimento, o que mostra que as pessoas estão mais alertas para o problema, sobretudo ao nível dos jovens. A partir do ano 2000 as solicitações aumentaram substancialmente! São as instituições de ensino que mais nos solicitam. Realço aqui a Escola Afonso de Albuquerque, onde todos os anos realizamos várias sessões, a convite do Dr. Madeira, um professor muito atento para o problema. Muitas vezes há miúdos que nos procuram na sequência de uma sessão, reconheceram nas nossas palavras o problema vivido em casa. Pedem ajuda! Muitos choram. Já me aconteceu muitas vezes, vários anos depois, alguém me reconhecer e dizer que se lembra da sessão que fiz na sua escola, que se lembra de cada palavra e que o meu testemunho o marcou profundamente. Fico feliz! Sinto que pelo menos para aquelas pessoas fiz a diferença! Também fazemos muitas sessões para a comunidade e, regularmente, somos solicitados pelo estabelecimento prisional da Guarda. Muitos reclusos chegaram ali por causa do álcool e percebem-no depois de me ouvirem! Contamos com cerca de 450 sessões realizadas em vários pontos do país e ilhas.
P – Quais são os principais projetos para o futuro do Centro?
R – Continuar! Foi longo o percurso, foi sinuoso, mas podemos dizer que somos uma referência nacional. Sinto que criei um filho. O meu quinto filho, como costumo dizer. Tenho um sentimento de missão cumprida. Quando morrer, sei que deixarei um legado, uma herança, que desejo que continue para além de mim. Continuarei esta missão enquanto puder, um pai não deixa morrer um filho, certo? Desejo que alguém a continue depois de mim, se possível com a mesma entrega, a mesma resiliência com que o faço! Desejo que este “filho” continue o seu caminho…
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