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Voltaire e a comunicação de ciência

Mitocôndrias e Quasares

A velocidade de comunicação de informação tem ganho uma dimensão que poucos poderiam ter imaginado. Assistimos todos os dias a uma catadupa de notícias, opiniões, ideias que muitas vezes se sobrepõem umas às outras, sem qualquer tipo de valor intelectual ou jornalístico. Com o paradigma das redes sociais, assentou-se a democratização do acesso à informação, sem conteúdo tendo-se assistido à democratização da seleção da informação. Infelizmente, a ciência, em especial a comunicação de ciência, não tem sido imune. Davide Marçal, comunicador de ciência, na sua crónica na “Notícias Magazine” dá alguns exemplos deste tipo de comunicação, muitas vezes feita sem ter uma base científica sólida, mas apenas à procura de um “soundbyte” que atraía mais leitores. Ficam aqui dois exemplos selecionados do texto publicado por David Marçal: «Quer viver até aos 150 anos? Então tem de parar de ter sexo. Dormir nu pode reduzir o risco de diabetes e ajuda a queimar calorias».

Como é óbvio, este tipo de metodologia de comunicação de ciência está longe, quer na forma, quer no conteúdo, da metodologia utilizada nos primórdios da comunicação de ciência, ainda que a publicação de literatura se tenha mantido ao longo dos séculos. Olhemos um exemplo muito interessante da comunicação de ciência sobre o terramoto de Lisboa. Como é do conhecimento de todos, no dia 1 de novembro de 1755, um terramoto destruiu Lisboa. À época, Lisboa era uma das cidades mais prósperas da Europa, pelo que este evento agitou toda a civilização ocidental, que procurou encontrar explicações religiosas, filosóficas e científicas para este fenómeno. O acontecimento foi um marco tão grande que Voltaire, um dos pensadores mais influentes da época, dedicou duas obras fundamentais ao terramoto: “O Poema sobre o Desastre de Lisboa” e “Cândido ou Optimismo”. Nestas obras, Voltaire ataca os filósofos otimistas porta-vozes da teoria do “tout est bien”, que explicavam a catástrofe, que provocou milhares de vítimas humanas e volumosas perdas materiais, como a intervenção de um Deus justo e benevolente.

Numa carta dirigida a Jean-Robert Trochin, de 24 de novembro de 1755, o pensador francês aborda pela primeira vez o tema do terramoto. Trata-se de um texto breve que reúne as principais ideias que mais tarde aprofundaria no “Poema” e, em 1758, em “Cândido”. A teoria de que “tudo está bem” e de que este é o melhor dos mundos possíveis era apoiada por muito filósofos de Inglaterra e Alemanha aos quais Voltaire se opôs, duvidando que as afirmações dos otimistas servissem de consolo às infelizes vítimas de terramoto. Opunha-se claramente ao discurso que afirmava que tudo tinha sucedido para o bem da maioria porque as desgraças respondem a um género de “lei geral” benéfica que cumpre um determinado papel no plano supremo de Deus.

No “Poema”, Voltaire resume três anos de terríveis acontecimentos. À notícia do terramoto de Lisboa, segue-se, em 1756, o início da Guerra dos Sete Anos, assim como o domínio dos jesuítas no Paraguai, os reis destronados e o despotismo turco. Em “Cândido ou Optismo”, o violento contraste entre ideias e factos fica exemplificado em Pangloss, o precetor de Cândido, que encontra uma explicação para tudo graças ao princípio de que «nada pode ser melhor», já que, caso contrário, «tudo seria de outro modo». Foi assim que Voltaire caracterizou o método dedutivo dos otimistas com silogismos grotescos.

O seu objetivo era demonstrar que é absurdo procurar a explicação para o que sucede fora do mundo que nos rodeia e remeter-se a uma ordem superior para justificar as incongruências e desgraças que a humanidade sofre diariamente.

Por: António Costa

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