Arquivo

Um mártir alimenta-se de martírio

Tudo o que se passa com Sócrates é um espetáculo. Literalmente. A detenção foi um espetáculo televisivo. As visitas a Évora. As cartas publicadas na imprensa. Porque o espetáculo aproveita aos dois lados. Mas como cada fogo se extingue, cada nova chispa é ateada com entusiasmo. Recíproco. Agora, é prisão domiciliária com pulseira eletrónica, que Sócrates talvez recuse. O “talvez”, aliás, já criou espetáculo. E essa é uma forma de Sócrates viver fora da cadeia.

É muito difícil escrever uma linha que seja sobre Sócrates que seja lida sem fanatismo, ou a favor ou contra ele. Sempre assim foi, aliás. Na prisão, a própria argumentação de Sócrates tende a extremar posições: Sócrates defende-se argumentado que o prenderam para investigar e de que se trata de um processo político.

A forma como reage desde o princípio passa por esta vitimização musculada, sem mostrar respeito mas despeito por Carlos Alexandre, sem revelar lamento mas protesto em relação à investigação, sem indiciar medo mas fúria. Sócrates igual a Sócrates. Mas da hipervigilância mediática com a detenção, com as visitas, com as cartas, com os advogados, com a explicação das suspeitas, o assunto foi perdendo gás. E Sócrates precisa de gás, de força mediática que pressione a justiça. E não há pressão mais séria do que a de exigir que a acusação seja rápida e sólida. Está demasiado em aberto para não sê-lo. “Sócrates contra a justiça portuguesa” será sempre o título ideal para o jogo de quem está detido. Uma arma de ataque usada como defesa.

Recusar sair da cadeia com pulseira eletrónica é surpreendente e é corajoso. Ninguém está seis meses “dentro” e fica incólume. Ninguém pode não sonhar com estar em casa. Não só por conforto, mas também por liberdade: domiciliária é também uma restrição significativa mas em todo o caso menos que a preventiva. Mesmo quanto à defesa: em casa pode receber-se pessoas, advogados, jornalistas, amigos… Se Sócrates de facto recusar, o que veremos amanhã, está a tomar uma posição de força, de desafio mas também de defesa, porque sublinha o martírio em que se tem colocado.

Em condições normais, a acusação tem de ser deduzida em quatro meses, ou o arguido sai de preventiva. Neste caso, pela complexidade especial do caso invocada pelo juiz, pode ir até um ano. E entre as várias fases do processo, mesmo depois da acusação é teoricamente possível reter José Sócrates até ao início de 2018. Essa delonga será, no entanto, sempre usada por Sócrates para se vitimizar. E a partir do momento em que ele tenha razão, ou em que seja essa a perceção pública, o trabalho do juiz e do procurador passa a ser questionado e questionável. É por isso que a acusação tem de ser convincente, num sentido ou no outro.

A não ser que a estratégia seja vencer pelo cansaço, partir em vez de dobrar, extinguir a voz de Sócrates no espaço público, deixá-lo a secar como bacalhau ao sol. Isso não seria no entanto investigar, seria torturar. E por mais que se odeie Sócrates, tem de odiar-se ainda mais a discricionariedade da justiça. Carlos Alexandre e Rosário Teixeira têm a reputação da justiça nas mãos.

Por: Pedro Santos Guerreiro

Sobre o autor

Leave a Reply